Quando viveu a agente Dana Scully na série de ficção científica “Arquivo X” durante a década de 90, a atriz Gillian Anderson demorou três anos até igualar seu salário ao de David Duchovny, ator que interpretava Fox Mulder e com quem dividia o protagonismo da série. Quando voltou a negociar com o estúdio para atuar nos novos episódios lançados em janeiro deste ano, a atriz se surpreendeu ao ver que essa briga não tinha ficado nos anos 90. Em uma entrevista à revista “The Hollywood Reporter”, ela revelou que, em um primeiro momento, o estúdio lhe ofereceu metade do que estava pagando a Duchovny – apesar do currículo da atriz contar com pelo menos dez projetos a mais do que o do ator desde o encerramento das temporadas originais em 2002.
O exemplo foi apenas o mais recente em uma ampla discussão na indústria do entretenimento americana, mas também representa uma faceta mais glamourosa de um problema presente no mercado de trabalho como um todo. Nos EUA, profissionais mulheres recebem, em média, US$ 0,79 para cada US$ 1 recebido por homens, diferença que diminuiu em apenas 2% desde o primeiro mandato de Barack Obama.
Na semana passada, o presidente americano anunciou que as empresas do país terão que incluir nas informações que passam a uma comissão do governo federal os salários pagos aos funcionários divididos por gênero e raça. No fim do ano passado, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, anunciou que o governo passaria a exigir a publicação da diferença entre remuneração de profissionais homens e mulheres dentro de grandes empresas.
Embora essas medidas estejam distantes do Brasil, algumas companhias estão tomando atitudes similares no país, e começando a incluir a diferença salarial como um dos pilares da crescente discussão sobre a presença feminina no mundo corporativo. O objetivo é medir, identificar e corrigir discrepâncias que não possam ser explicadas por fatores como experiência, tempo de casa ou a área de atuação na empresa.
No Brasil, dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) referentes a 2014 apontam que a diferença na remuneração entre trabalhadores homens e mulheres é de 18% em todo o mercado de trabalho, chegando a 38% entre salários de profissionais com nível superior completo. Parte dessa diferença é explicada pelos setores e áreas que empregam mais mulheres serem aqueles que, no geral, pagam salários menores.
Um estudo da consultoria McKinsey, no entanto, que usou dados do Fórum Econômico Mundial, identificou que a diferença salarial entre trabalhos semelhantes é um problema em todo o mundo. Na América Latina isso é ainda mais grave e o Brasil, um dos piores colocados.
Globalmente, mesmo entre os profissionais mais desejados pelo mercado corporativo – formados em cursos de MBA das escolas mais bem colocadas na lista de melhores do mundo do “Financial Times” – há uma diferença salarial de 19% entre homens e mulheres. Embora apresente variações, a diferença aparece em praticamente todos os níveis hierárquicos, mesmo quando comparados profissionais do mesmo setor.
Diferença salarial é um dos pontos analisados pela Aliança pelo Empoderamento da Mulher, grupo que reúne dez empresas nacionais e estrangeiras onde o tema será uma das prioridades das discussões ao longo deste ano. O assunto, no entanto, não foi incorporado sem barreiras. “Mesmo em empresas que discutem a questão de gênero, o salário é o último tema em que se toca”, diz a pesquisadora Regina Madalozzo, do Insper, que faz parte do grupo. “A primeira reação é dizer que não há esse problema, porque ele nunca é intencional.”
Por conta disso, a Aliança criou uma medida que não constrangeria os RHs responsáveis por buscar as informações, mas “faria as empresas pensarem no assunto”. O grupo pede que as companhias compartilhem os dez maiores salários de cada nível hierárquico e a Aliança analisa quantos são pagos a homens e quantos a mulheres. “Quando 80% dos maiores salários são de homens, isso é um alerta”, diz Regina. Em razão da confidencialidade do grupo, ela não pode abrir informações sobre os resultados encontrados, mas diz que, ao longo da vida acadêmica pesquisando o tema, já ouviu diversos relatos de empresas que não consideravam ter esse problema até fazerem uma medição.
Os motivos variam de acordo com a companhia. Muitas vezes o salário menor da mulher é “herdado” do emprego anterior, onde ela já ganhava menos. Há casos de organizações que descobrem que as métricas de avaliação acabam privilegiando profissionais homens – por isso, comparar as médias de avaliação de desempenho também é uma das atividades da Aliança. “Quando você descobre as causas, é preciso agir sobre elas, o que dá muito trabalho. Mas vejo mais empresas dispostas a comprar a briga hoje”, diz Regina.
A Schneider Electric incluiu o tema nas ações do programa da ONU HeForShe, do qual faz parte. A empresa francesa é uma das dez companhias que anunciaram no último Fórum Econômico Mundial medidas para aumentar a presença feminina no topo das organizações, mas apenas ela e o grupo hoteleiro Accor incluíram igualdade salarial na agenda. Ao longo do ano passado, a Schneider expandiu o monitoramento que já fazia na matriz para unidades de outros países como o Brasil.
“Levantamos dados e observamos o cargo, experiência do profissional e a performance”, diz Malena Martelli, vice-presidente de RH da empresa no Brasil. Qualquer diferença que não possa ser explicada dessa forma foi considerada um “prejuízo” de gênero. Ela apareceu em 2,4% dos quase 3,5 mil funcionários da empresa no Brasil. Uma parte do orçamento já foi separada para que os valores sejam corrigidos em abril deste ano, e o monitoramento será repetido todos os anos.
Em seu estudo sobre desigualdade de gênero, a McKinsey listou uma série de intervenções que empresas podem promover para atuar especificamente na discrepância de salários. “O primeiro passo é medir, para então entender as causas e atuar nelas”, diz Mariana Donatelli, gerente sênior da consultoria no Brasil. Mais transparência nos salários de toda a organização e treinamentos de negociação salarial são outras indicações.
Membro da Aliança, a Avon realiza uma medição profunda a cada seis meses desde 2014. Os salários são analisados por nível, área, tempo de casa e avaliação de desempenho, sempre comparando com a média do mercado e dos indicadores na empresa. “Se há igualdade de salário em uma posição, mas a mulher está há mais tempo no cargo, é preciso investigar”, explica a vice-presidente de RH, Alessandra Ginante.
Sempre que alguma discrepância é apontada, os casos são analisados individualmente e, se as diferenças não puderem ser explicadas, o gestor é informado de que precisa corrigi-la. A empresa também faz um recorte por raça, uma vez que muitas das diferenças encontradas eram casos de mulheres negras.
Um ponto que Alessandra enxerga no mercado e que faz questão de auditar na Avon é o aumento por mérito nos anos em que a mulher sai de licença-maternidade, para garantir que o período fora não prejudique a profissional. Para ela, a questão salarial é um ponto que se conecta com outros indicadores que precisam ser trabalhados para garantir a igualdade de gênero dentro da organização como os sistemas de promoção, treinamento e sucessão. “Vivemos em um mundo que não é equânime, por isso é preciso manter uma cultura e processos que garantam igualdade”, diz.
A Dow, que faz parte da Aliança, mediu os salários em diversos níveis e encontrou uma diferença de 4%, mas que acabou explicada pelo tempo de casa dos profissionais. Para garantir que a diferença não surja na contratação, todos os salários são analisados pelo departamento de compensação e benefícios para entrar na média do mercado. “Nossa meta é ter sempre 50% dos candidatos de cada gênero”, explica Marcos Schmidt, líder de desenvolvimento de pessoas para a América Latina. Em 2015, a empresa alcançou 30% de mulheres no alto escalão da região.
Na KPMG, que integra a Aliança, medição encontrou diferenças consideradas dentro da margem de erro, mas acabou evidenciando outro problema: em alguns níveis, não havia mulheres suficientes para gerar uma comparação. Para reverter isso, a consultoria tem programas de mentoria e está começando a promover treinamentos para identificar e combater preconceitos inconscientes.
Na opinião da sócia Marienne Coutinho, levantar indicadores variados sobre a presença feminina é importante também para convencer os colegas homens de que determinados problemas são uma realidade. “Não tem uma reunião com homens onde eu não leve números”, diz. Em algumas áreas da consultoria, elas já são maioria das contratações por conta do desempenho nos testes de admissão. “Não faz sentido investir na contratação sem dar condições para que elas continuem na empresa.”
Fonte: Valor Econômico, por Letícia Arcoverde, 04.02.2016
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