A defesa do princípio do “negociado sobre o legislado” na discussão dos direitos trabalhistas perdeu defensores no movimento sindical. Em diferentes momentos, os metalúrgicos do ABC e os de São Paulo, respectivamente as principais forças da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Força Sindical, defenderam esse princípio e, inclusive, tentaram implementá-lo. Hoje, diante do atual cenário econômico e político e da ausência de medidas paralelas que ampliem a organização sindical no local de trabalho, o assunto ficou mais controverso. Dentro da CUT, quem apoiava, não apoia mais. Na Força Sindical também há resistência.
A defesa do “negociado sobre o legislado” está no documento “Ponte para o Futuro”, do PMDB, e nas conversas da equipe do vice-presidente, Michel Temer, e também foi reapresentada no Congresso Nacional, em abril, por meio de projeto de lei do deputado Julio Lopes (PP-RJ). A Confederação Nacional da Indústria (CNI) concorda com o projeto de Lopes, cujo primeiro e principal artigo é idêntico ao que constava de proposta apresenta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em 2001. Aprovado na Câmara, ele foi depois retirado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando tramitava no Senado.
A equipe de Temer tem considerado propor uma mudança da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) com o mesmo objetivo (o que for negociado possa se sobrepor à legislação). O fato de uma proposta com esse princípio ter sido entregue ao governo Dilma Rousseff pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em 2011, dá respaldo à ideia. O argumento é que ela foi inspirada nas relações de trabalho na Alemanha e garantiria a manutenção de os direitos constitucionais, como férias com abono, 13º salário, FGTS, entre outros.
O projeto de 2001 do governo FHC e o atual, de Lopes, não falam de organização sindical. O cerne é mudar a redação do artigo 618, da CLT, que passaria a vigorar com a seguinte redação: “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição e as normas de medicina e segurança do trabalho”.
Para a CNI, essa formulação garante que os direitos previstos no artigo 7º da Constituição, e que incluem férias com adicional de um terço do salário, jornada de 44 horas, 13º salário, FGTS, entre outros, ficariam preservados, mesmo se fosse feito um acordo envolvendo trabalhadores de um sindicato considerado “fraco”. “Não há supressão de direitos”, diz Alexandre Furlan, presidente do Conselho de Relações do Trabalho da CNI.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, e o secretário-geral da Força Sindical, João Carlos Gonçalves, o Juruna, lembram que há uma diferença fundamental entre o que estava na proposta de FHC – e está no projeto de Lopes -e o que chegou a ser defendido por alguns sindicatos fortes: o direito à livre organização sindical e sua atuação no local de trabalho.
“Essa discussão [do negociado sobre legislado] só pode ser feita junto com o fortalecimento da organização sindical, com o direito de representação no local de trabalho, com direito de greve”, diz o presidente da CUT. “Da forma como ela está colocada, somos contra”, resume Juruna, também vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.
A proposta entregue em 2011 pelos metalúrgicos do ABC – e que instituía a figura do Acordo Coletivo Especial (ACE) -, previa que o acordo entre as partes prevaleceria sobre a lei. No detalhamento, contudo, toda negociação estava subordinada a um fortalecimento da organização sindical no local de trabalho.
Estava explicitamente definido que o acordo seria entre um sindicato de trabalhadores e uma empresa, que os funcionários da empresa teriam liberdade de organização, com eleição direta de uma comissão de representantes, que 50% mais um dos trabalhadores da empresa deveriam ser sindicalizados e que o acordo, posteriormente, teria que ser aprovado em assembleia.
“O que defendíamos ia muito além de simplesmente propor a preponderância do negociado sobre o legislado”, diz o presidente do sindicato do ABC, Rafael Marques. “Já em 2012, dentro da CUT, e depois de perceber como essa proposição interessou aos empresários, revimos nossa posição. “
“Era uma proposta para poucas categorias e negociações específicas”, lembra Freitas, da CUT. O problema, diz, é que alguns direitos estão definidos na Constituição, e detalhados em lei ordinária. O FGTS, por exemplo, é um direito, mas a alíquota de 8% está fora da Constituição, afirma.
Marques, do ABC, vai além. Ele diz que essa proposta poderia criar uma “guerra trabalhista”, onde as empresas poderiam transferir produção para locais onde fosse mais fácil negociar com os sindicatos. Ela usa como exemplo as férias. Elas estão garantidas na Constituição, mas um acordo direto poderia permitir às empresas dividi-las em cinco vezes e não 30 dias corridos, à escolha do empregado. Ou então liberar o trabalho aos domingos, sem pagamento de hora extra. “A aplicação do direito reduziria seu benefício”, argumenta.
Furlan, da CNI, refuta essa avaliação. A ideia, diz, é permitir que a CLT – uma legislação de 73 anos – acompanhe a mudança produtiva e nas relações de trabalho ocorrida ao longo de sete décadas. Ele usa o exemplo da hora de almoço. A legislação hoje impede que seja inferior a uma hora, mas há trabalhadores a quem interessa reduzir esse período para sair mais cedo ou mais tarde na empresa, ou liberar o trabalho aos sábados.
Outro exemplo é o das horas extras: em determinado período, a empresa precisa de mais produção, em outros, a demanda cai, e para a indústria seria importante organizar a jornada em uma base que não seja diária. “Isso não contraria um direito”, afirma Furlan.
Os exemplos citados pelo representante da CNI encontram eco entre os sindicalistas. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC chegou a negociar a redução da hora do almoço na Mercedes-Benz em troca do não trabalho aos sábados, após aprovação em assembleia, mas depois a Justiça impediu que o acordo fosse implementado. Mas Marques insiste que a visão sindical e a empresarial são diferentes.
Em 2001, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, ligado à Força Sindical e na época presidido pelo deputado federal Paulo Pereira da Silva, o Paulinho (SD-SP), aprovou, em assembleia, o aval da categoria para que a diretoria negociasse por empresa -desde que houvesse aprovação dos trabalhadores da respectiva fábrica – a flexibilização do horário do almoço, a divisão das férias, o parcelamento da participação nos lucros, entre outros itens.
Alguns acordos foram firmados, mas a Justiça do Trabalho interferiu e as negociações foram suspensas. Hoje, Paulinho endossa a posição da Força, que é vincular qualquer flexibilização ao fortalecimento da organização sindical no local de trabalho.
Freitas diz que o momento político e econômico impede qualquer acordo em torno de uma proposta de apoiar o negociado pelo legislado. “Aquilo [o projeto do ABC] foi feito em outro momento. Hoje, com a ameaça do desemprego, com esse Congresso e sob um governo que não reconhecemos, não há essa possibilidade”, diz. Segundo ele, essa discussão só poderia ser feita junto com a ampliação do direito de organização sindical.
“Não dá para comparar o Brasil com a Alemanha. Lá o sindicato não é um prédio na rua do Carmo [sede dos metalúrgicos de São Paulo]. Ele está também fisicamente dentro da fábrica”, pondera Juruna. O negociado sobre o legislado pode ser um avanço para o movimento sindical, reconhece ele, mas desde que isso venha junto com o reconhecimento da representação dos trabalhadores.
Furlan, da CNI, concorda que empregadores que não reconhecem a organização sindical ainda são uma realidade no país, mas advoga que não é possível impedir o avanço onde ele pode ser negociado por conta de realidades atrasadas. O país, diz, é muito desigual e isso precisa ser considerado. Insiste que a forma como a mudança na CLT tem sido proposta preserva os direitos constitucionais dos trabalhadores. “A legislação amarra as empresas e há uma interferência excessiva da Justiça do Trabalho. É preciso tirar o viés ideológico dessa discussão. Não estamos falando de reduzir direitos”, afirma.
Fonte: Valor Econômico, por Denise Neumann, 09.05.2016
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