Se alguém lhe pedir para pensar em uma imagem que ilustre palavras como “gerente” ou “profissional”, o que vem à sua mente: um homem ou uma mulher? E quando você pensa nas palavras “família” e “casa”, essa imagem muda?
Perguntas desse tipo estão começando a aparecer nos treinamentos de altos gestores de grandes companhias no Brasil como parte do esforço para promover mais diversidade no quadro de funcionários. Chamado de “preconceitos inconscientes”, ou “unconscious bias” no original em inglês, o tema está se tornando mais popular entre multinacionais que já promovem esse tipo de prática na matriz.
Por meio de testes que envolvem questionamentos como os acima ou a simulação de situações, as companhias querem que seus líderes pensem sobre preconceitos que muitas vezes estão internalizados e se manifestam de forma velada e sutil – mas ainda assim prejudicial para profissionais que não fazem parte do “padrão” masculino, branco e heterossexual que domina o mundo corporativo brasileiro.
No Google, que começou a abordar o assunto globalmente em 2013, todos os gerentes da subsidiária brasileira já passaram pelo treinamento. A empresa também promove um workshop chamado “Bias Busting” (algo como “Desmascarando Preconceitos”), que busca discutir atitudes e práticas que podem ser melhoradas no dia a dia.
“Ainda precisamos fazer muito para atingir o nível de diversidade que desejamos e, para isso, temos que contar com a participação de todos os funcionários”, diz a diretora de RH para a América Latina, Monica Santos. Dados divulgados em meados deste ano em um relatório de diversidade mostram que apenas 30% da força de trabalho global do Google é formada por mulheres, número que cai quando analisadas vagas técnicas (18%) e de liderança (22%).
Para Monica, conversar sobre o tema faz com que os profissionais se tornem mais atentos a “sinais sutis” que muitas vezes aparecem como piadas e brincadeiras. “Vimos mudanças na forma como as pessoas tomam decisões. Elas perceberam que precisam usar alguns mecanismos para reduzir o preconceito, como sempre ter dados ou definir critérios claros e usá-los de forma consistente”, diz.
A busca por esse tipo de treinamento hoje é crescente, de acordo com Reinaldo Bulgarelli, sócio-diretor da consultoria Txai. “É um bom primeiro passo para empresas que querem começar a trabalhar o tema diversidade.” A Txai é a organizadora do Fórum de Empresas e Direitos LGBT, um grupo de companhias que se reúne periodicamente para debater assuntos relacionados à presença e direitos de profissionais lésbicas, gays, bissexuais e transexuais no mercado corporativo.
A própria consultoria promove um workshop com gestores apresentando situações e incentivando a reflexão dos profissionais. Bulgarelli brinca que os treinamentos de preconceitos inconscientes à moda brasileira são treinamentos de “desde que”. “As pessoas sempre dizem ‘quero contratar o melhor candidato’, desde que não seja mulher, negro, nordestino, etc.” Para ele, é preciso atenção na hora de promover treinamentos que venham prontos da matriz de multinacionais, pois é importante incorporar aspectos culturais e sociais brasileiros à discussão.
A fabricante de eletrodomésticos Whirlpool, dona das marcas Consul e Brastemp, promoveu um projeto piloto de treinamento em preconceitos inconscientes ao longo deste ano, como parte do programa de diversidade e inclusão. Profissionais em cargos de gestão foram convidados a fazer um teste on-line de associação implícita, produzido por universidades americanas, com foco em papéis de gênero e carreira. Com duração de cerca de dez minutos, o questionário pede para o usuário associar palavras como “carreira” e “gestão” ou “família” e “filhos” a homens e mulheres, e mede a rapidez com que a associação é feita. O resultado demonstra se a pessoa tem tendência forte, moderada ou fraca a fazer determinadas relações quando pensa em papéis de gênero.
Após fazer o teste, os profissionais participam de um almoço em que o tema é posto em debate, onde podem comparar os resultados entre si e com os dados de uma pesquisa interna sobre presença feminina que a Whirlpool realizou recentemente. A expectativa da diretora de RH, Andrea Clemente, é ter a participação de cerca de 100 dos 600 gestores até o fim do ano.
Com as informações coletadas nas discussões, a empresa pretende formular um treinamento formal de preconceitos inconscientes, que será incluído em um módulo da universidade corporativa da companhia. “Um dos pilares é fazer as pessoas pensarem ‘como eu contrato outros profissionais? Eles são muito parecidos comigo?'”, diz. Atualmente, a empresa exige que todos os processos de recrutamento tenham candidatos homens e mulheres na mesma proporção. Há também discussões em andamento em comitês de diversidade sobre política de licença-paternidade e horários flexíveis.
Com o treinamento, Andrea quer incentivar os funcionários a fazerem uma autoavaliação. “Temos que trabalhar a conscientização nos líderes para depois transformar isso em boas práticas”, diz. Com as mudanças, a Whirlpool espera aumentar a participação de mulheres nos cargos de liderança. Hoje, elas respondem por 30% das gerências, índice que diminui nos níveis mais altos da hierarquia.
Para a professora Maria José Tonelli, coordenadora do Núcleo de Estudos em Organizações e Pessoas (Neop) da Fundação Getulio Vargas, o mundo corporativo está percebendo que as organizações não são neutras quanto ao gênero. “Elas foram construídas dentro de um modelo masculino, e esse é um formato que não é questionado”, diz.
Maria José ministra uma disciplina sobre questões de gênero criada neste ano para os cursos de graduação em administração pública e de empresas da FGV de São Paulo. Durante as aulas, a pesquisadora diz ter se surpreendido ao ver, com o relato das alunas, que muitas das atitudes que ela viveu no mercado de trabalho em décadas passadas continuam a existir entre as novas gerações.
O consultor americano David Rock, especialista em neuroliderança, está estudando os resultados de treinamentos de preconceitos inconscientes em suas pesquisas. Sua conclusão é que, apesar de ser positivo que empresas abordem o assunto, é essencial também que elas mudem seus processos internos. “O ser humano não consegue tomar uma decisão e perceber, simultaneamente, que ela foi tendenciosa, da mesma forma que o cérebro não consegue somar e multiplicar ao mesmo tempo”, explica. “É possível, entretanto, se antecipar a isso e tornar os processos menos tendenciosos.”
A Dow, que atua na indústria química, promove esse tipo de treinamento na América Latina todo ano desde 2012. Para 2015, quase todos os gestores já participaram, o que soma cerca de 400 pessoas na região. “Para pensar em como esses preconceitos impactam o trabalho, precisamos analisar a raiz deles”, diz Marcos Schmidt, líder de desenvolvimento de pessoas para a América Latina, que aplica o treinamento no Brasil. Com cerca de duas horas de duração, o encontro em que os gestores discutem o assunto também inclui a formulação de um plano de ação do que pode ser feito para minimizar essas tendências.
As práticas e políticas relacionadas à diversidade também são trabalhadas em grupos voltados a profissionais mulheres, LGBT, negros e profissionais com deficiência, que hoje reúnem ao todo mais de 600 pessoas de diversas áreas da empresa. “O mais importante do treinamento é garantir que o líder tenha responsabilidade e capacidade de transmitir uma cultura única para os funcionários. Questões que envolvem preconceito devem ser discutidas de forma tranquila entre todos na companhia.”
Fonte: Valor Econômico, por Letícia Arcoverde, 12.11.2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário