quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Freud e o Socialismo - Erros Comuns, Conflito e Cultura de Paz

É conhecida a afirmação de Freud que o “comunismo” [1] não resolveria a questão da violência. Diz Freud: “Os comunistas acreditam haver encontrado o caminho para a redenção do mal. O ser humano é inequivocamente bom, bem-disposto para o próximo, mas a instituição da propriedade privada lhe corrompeu a natureza” (O Mal-Estar na Civilização. Cia. das Letras, 2011:58). E segue com a tese que o comunismo acredita que a posse de bens privados de um indivíduo lhe dá poder acima dos demais e o leva a maltratar o próximo “despossuído que deve se rebelar contra o opressor”. Finalmente, depois de afirmar “que o seu pressuposto (do comunismo) psicológico é uma ilusão insustentável” (ob cit: 59), justificado pelo fato da agressividade humana não ter sido criada pela propriedade e não acabar seja qual for a forma política e social, ou sistema econômico, e ela começar ainda na criança com o abandono da satisfação anal (sua propriedade), chega à conclusão que “Se eliminarmos o direito pessoal aos bens materiais, subsiste o privilégio no âmbito das relações sexuais, que se torna fonte do mais vivo desgosto e da mais violenta inimizade entre seres que de outro modo se acham em pé de igualdade.” (ob cit: 59-60. grifos nossos).

Já se disse que a psicanálise não é, estrito senso, uma ciência. Lacan o afirmou em 1977, a psicanálise seria um “devaneio cientifico”.[2] Mas, de fato, o ponto importante é saber se, e em que termos, uma teoria que tem a responsabilidade da prática que afirma e maior responsabilidade na prática que nega, mesmo que apenas no plano teórico, pode contribuir para a paz e justiça social, sem, claro está, submeter os indivíduos a um despotismo estatal ou de massas. Daí que existem aqui erros importantes na presunção freudiana, mas que se espalharam entre os cidadãos como propaganda e ideologia do liberalismo burguês contra o socialismo.

O primeiro erro é atribuir ao comunismo a ideia do “bom selvagem”, ou do homem cordial, em natura, sendo que de fato essa ideia está mais ligada a Rousseau, e à sua ideia que foi a propriedade privada que criou a dominação e a exploração dos poderosos. Ainda que o marxismo posterior tenha aceitado de várias formas o cogito de Rousseau, não é o traço de caráter humano que é a essência do socialismo cientifico desenvolvido posteriormente por Marx e Engels e demais teóricos marxistas. Isto é, em uma escala de importância, pode-se dizer que a discussão do homem “bom” ou “mau”, no “socialismo científico” (que aliás Freud desconhece em sua obra e não diferencia de “comunismo” e de “socialismo real”), passa sempre pela relação social, pelo homem real produto de determinadas relações sociais, a começar pelas produtivas, no âmbito da produção, portanto, a maldade e a agressão são vistas como fenômeno social e não psíquico como Freud o estuda.

Um segundo erro, no que nos interessa aqui estudar, é a ideia “banal” e “superficial” que o chamado comunismo irá eliminar o direito pessoal aos bens materiais – não existe de fato nada mais distante da compreensão do socialismo científico. O que o socialismo marxista colocou em sua teoria é que aquilo que são os bens essenciais à vida dos homens, produzidos coletivamente, deveriam ser repartidos por todos na medida de suas necessidades, pressupondo-se que tais necessidades – por exemplo comer, vestir e morar, educação e saúde, os avanços da ciência e tecnologia etc. -, sejam comuns a todos, e devem ser colocados à disposição de todos. Portanto, ao contrário, não se trata de tirar as coisas, mas de dá-las a todos de forma a desenvolverem em igualdade a potencialidade de seus intelectos.

Mas Freud via outra coisa na socialização da vida humana: “é fácil objetar que a natureza, dotando os indivíduos de aptidões físicas e talentos intelectuais bastante desiguais, introduziu injustiças contra as quais não há remédio” (ob cit: 59), e assim, uma coisa se justifica com a outra, ou seja, como as aptidões são naturalmente desiguais está justificada a desigualdade material entre os homens, a dominação e exploração dos poderosos e a desumanidade e verdadeira agressão do sistema de mercado. Na verdade nada disto é novo, pois basta ler os utilitaristas ingleses e as escolas filosóficas e econômicas que eles defenderam e desenvolveram, para ver quanto Freud está aqui totalmente impregnado do discurso burguês, pouco conciliador e pouco pacifista, na verdade muito preconceituoso.

Para ilustrar nossa posição, isto é, porque Freud entendia pouco de “socialismo” ou “comunismo”, basta aqui reproduzir a célebre passagem de Karl Marx: “(…) então (no comunismo) será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (Marx. Crítica ao programa de Gotha, [1875]. Obras Escolhidas. Alfa-Ômega,1980:214-215. grifos nossos.).[3] Sem nos estendermos muito, mas ainda na perspectiva de uma determinada “cultura de paz”, é notório quanta aproximação e cuidado com o outro, quanta não violência se encontra aqui, primeiro porque “a cada qual, segundo suas necessidades”, encerra em si mesma a justiça e a prática ética de distributividade essencial a todos os indivíduos, do ponto de vista material, pois é nesta igualdade que se desenvolverá a potencialidade espiritual; por outro lado, fica claro que os indivíduos têm direito pessoal aos bens materiais (diferentemente ao cogito freudiano).  Segundo, consequentemente, porque todos têm direito aos bens materiais, será “de cada qual, segundo sua capacidade”, o que elimina a ideia errônea que não haveria condições e motivação para uma vida fértil e criativa, porque uma forte verve comunitária inibiria o elã e a pulsão pela vida sofisticada, mantendo todos no mesmo patamar espiritual.

Aliás, por erros fundantes das interpretações iniciais freudianas, muitas vezes se vê na dialética compositiva a inibição do Eu e seu desinteresse pela argumentação e contraditório, quando, na verdade, estabelecidas as regras adequadas, a paridade de armas e igualdade de participação nos personagens, leva a esse pendor para o encontro e a construção coletiva da vida que gera o maior interesse pelo desenvolvimento intelectual.

Toda a filosofia psicanalítica se baseia na “pulsão” ou desejo de vida (Eros) em oposição à “pulsão” de morte (Thánatos); neste momento não nos interessa discutir se existe ou não essa “pulsão”, e se as deduções e ilações freudianas, neste pormenor, são corretas etc. Mas posto que exista mesmo o desejo e a energia sexual, não interessa ao socialismo acabar com ela, e aqui reside, em nosso entendimento, o erro dos que se acostumaram, igualmente, a preconizar como “natural” a agressão e violência humana, pois o que interessa do ponto de vista do socialismo, e de uma cultura de paz, é a aproximação entre as pessoas e como essa energia pode ser útil ao sujeito e à coletividade. O contraditório é uma manifestação dessa pulsão de vida; trata-se de saber como essa pulsão pode servir ao coletivo no limite de escolha livre do sujeito que se emancipa da ideia de “concorrência”, disputa e sucesso medido por bens materiais. Existe alguma dúvida que é a forma mercadoria que potencializa essa pulsão pelo individualismo, pela reificação da vida nas coisas, nas mercadorias como sucesso etc? Nas palavras do próprio Freud: “Domado e moderado, como que inibido em sua meta, o instinto de destruição deve, dirigido para os objetos, proporcionar ao Eu a satisfação das suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza.” (ob cit: 67. grifos nossos).

A compreensão dessa falta de racionalidade, ou melhor, a compreensão da perversa racionalidade de mercado, deve ser suficiente para se construir uma cultura de paz, e não acabar necessariamente com o conflito, entendido como a relação humana, fenômeno social, a pessoa em processo de aprimoramento espiritual. A criatividade é pulsão de vida e é sexualidade! Se não existem motivos para acreditar que um sistema político de governo coletivo possa eliminar a aversão que o espírito subjetivo (Hegel) faz à cultura, por outro lado, tampouco existem motivos para fazer a condenação a tal governo coletivo como pretendente a eliminar a paixão de cada indivíduo pela vida, apesar do humano como fenômeno social tender à civilização.

Não se trata de domesticar pessoas, e se a forma de mercado o faz em favor de valores, a forma coletiva de existência não o fará senão em favor do bem-estar do Ser e do Ser coletivo. O ato civilizatório para o socialismo é, antes de tudo, aproximação e entendimento; o processo civilizatório é, antes de qualquer coisa, proveniente desse contato, desse encontro. Se um sistema produtivo é incapaz de recriar as condições de convívio harmoniosas e voltadas para a conciliação, não tem sentido estender a incapacidade e incompetência dele (capitalismo) a outras formas e sistemas de produção e vida social (socialismo). O que é construído pelo homem pode ser desconstruído por esse homem: como em Hegel, quando o espírito subjetivo se transforma em espírito objetivo, o sistema de livre concorrência tende a um sistema de planejamento coletivo!

[1] Apesar de o senso comum usar estas expressões como sinônimas, na filosofia elas são coisas diferentes: Comunismo: fase superior do socialismo, modo de vida absolutamente coletivizado; Socialismo Cientifico: fase de transição entre o capitalismo e o comunismo, não é um modo de vida acabado; Socialismo Real: degeneração do socialismo pós capitalista, que correspondeu de fato ao stalinismo, ao nazismo, ao maoismo, sendo mais um capitalismo de Estado. De fato, o socialismo científico nunca foi implantado pela sociedade humana como a teoria o predicou.

[2] “A psicanálise não é uma ciência – ele diz. Não tem estatuto científico – só o aguarda e o espera… A psicanálise é um delírio – um delírio do qual se espera que se produza uma ciência… É um delírio científico, porém isto não significa que a prática psicanalítica produza uma ciência.” (Lacan, 1976,-7; Seminário de 11 de janeiro de 1977; Ornicar?) – referido no Diccionario Introductorio de Psicoanálisis Lacaniano – Dylan Evans

[3] Veja-se, em contrapartida, Marx: “Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizante dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades” (Marx. Crítica ao programa de Gotha, [1875], 1980:214-215). Para tal discussão, veja-se José Manuel de Sacadura Rocha, Sociologia Jurídica e Geral, GEN/ Forense, 2015 – Caps. 8 e 9.

SOBRE O AUTOR

José Manuel de Sacadura Rocha é bacharel em Ciências Sociais. Mestre em Administração. Especialista em Criminologia e Vitimologia, Marketing de Varejo, Sistemas de Informação, Mediação e Conciliação. Professor de Filosofia, Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Hermenêutica Jurídica, História do Direito e Metodologia da Pesquisa Científica, tanto nos cursos de graduação quanto nos de pós-graduação. Autor.

Fonte: genjuridico.com.br

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