quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A Punição e O Capital - Jurídico

Fonte: http://genjuridico.com.br/2016/03/11/a-punicao-e-o-capital-juridico/

Sobre o direito nas sociedades antigas e antigas civilizações, defendo a tese que uma das características mais importantes foi a passagem da vendeta (vingança pessoal) ou justiça pelas próprias mãos, da esfera do direito privado para o direito público, onde a punição passa a ser exercida pelo soberano, como no Código de Hamurábi ou na Lei Mosaica dos Hebreus.
Esta transferência do direito de punir ou retaliar o delito, geralmente crimes contra a vida, é consequência, em minha concepção, da necessidade de o soberano laico que habita o palácio rebelar-se e elevar-se além do poder do templo e dos sacerdotes. O medo que o soberano precisa exercer para ser obedecido e dominar o poder religioso obriga-o a escrever o direito de forma a punir com violência e desproporcionalidade, de forma bárbara e desmedida, os delitos, principalmente os contra a vida, mas também os contra o próprio palácio e templo – furtos e roubos, contra os costumes e a propriedade das classes mais abastadas.
Em tempo: a assim chamada Lei de Talião, que por analogia do texto hebraico-judeu-cristão, é desproporcional na sua “proporcionalidade” semântica: “olho por olho, dente por dente, mão por mão” etc., não é de fato nem menos violenta e nem menos desmedida, pois vários delitos que constam na lei de Moisés, como da prostituição, adultério, homoafetividade, roubo, são cruelmente punidos com a pena de morte por apedrejamento. O Egito, a Babilônia, entre os Persas, delitos de menor grau ofensivo são punidos com a morte de formas absolutamente horrendas.
Em minha tese, como disse, isso se deve à disputa pelo poder entre os sacerdotes e os reis: ambos veem nas punições bárbaras e nos ordálios uma forma de afirmarem seu poder. Neste sentido, pode-se dizer que o direito nasce violento, draconiano e como estratégia de dominação do “Estado” sobre os indivíduos.
Esta última afirmação pode sofrer reparações por parte de outras interpretações que partem e valorizam fundamentalmente as “relações sociais” como subjacentes à formação do direito, como no caso dos marxistas. Neste caso, partindo das chamadas “relações sociais de produção”, o direito civil, e não o penal, emergiriam primeiro e a Lei de Talião posteriormente. Não há dúvidas que todo o direito emerge das relações sociais concretas, da organização produtiva e social geral. Mas o mundo antigo desconhecia a “forma mercadoria” e a “propriedade privada”, apesar de existirem trocas mercantis e regulação creditícia, bem como existirem relações de dominação e exploração, a partir de “status social” e “posse”.
O que eu penso é que na Antiguidade Clássica, e quanto mais atrás se for, essas “relações sociais” são o pano de fundo da luta pela soberania e poder, diferentemente de hoje, na Modernidade capitalista, onde o poder estatal e o direito são a forma política de realizar e reproduzir a forma de mercado. Em outras palavras: no mundo antigo o poder do soberano disputado com o poder do sacerdote utiliza as relações sociais e a organização da sociedade civil para impor o terror; no mundo moderno é o contrário, as relações sociais e a organização social concreta já é o próprio “terror”, e o direito apenas legaliza na forma jurídica correspondente essa reprodução do capital. Esse é o motivo pelo qual a violência punitiva está presente tanto na regulação civil, como na punição dos crimes contra a vida. O que está em jogo é a luta pelo poder!
No direito moderno acredita-se que o direito de punir é substância e é legítimo por parte do Estado, quer dizer, o cidadão acredita que o Estado hoje quando pune, portanto, no âmbito da esfera pública, nunca  na esfera privada, não exerce violência, haja vista que não nos parece que o Estado seja vingativo. Para iludir sobre isso, a forma jurídica moderna, do tipo capitalista, aparece como não punitiva criminalmente no direito civil (com rara exceção: inadimplemento voluntário de obrigação alimentícia). Em compensação o direito penal moderno é absolutamente desproporcional e violento, verdadeiro estado policial na repressão contra os trabalhadores e contra as demais minorias que podem pôr em questão a desigualdade e expropriação.
A diferença da Lei de Talião da Antiguidade para a Retaliação punitiva da Modernidade, é que, à falta de noção devida de valores mercantis, a quantificação das punições praticamente inexiste nas punições antigas, pois é só quando a forma mercado se desenvolve modernamente que o delito pode ser medido, em abstrato, em termos de desvalor social e periculosidade, e sua correspondência racional em termos de pena.
Antes o direito foi usado para consolidar o poder do soberano sobre as demais classes, hoje o direito é usado para consolidar o poder da classe social dominante e do capital.
 De outra forma: se a punição no direito penal moderno não é violenta, não pressupõe o medo e não é desproporcional, como pode ela prevenir ou coibir o repúdio e a aversão contra o capital? E se a punição continua sendo violenta, portanto, pressupõe o medo e a desmedida punitiva, uma “violência legítima”, como pode-se dizer que a mesma não é vingativa contra as classes despossuídas?

SOBRE O AUTOR

José Manuel de Sacadura Rocha é bacharel em Ciências Sociais. Mestre em Administração. Especialista em Criminologia e Vitimologia, Marketing de Varejo, Sistemas de Informação, Mediação e Conciliação. Professor de Filosofia, Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Hermenêutica Jurídica, História do Direito e Metodologia da Pesquisa Científica, tanto nos cursos de graduação quanto nos de pós-graduação. Autor.

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