quarta-feira, 21 de setembro de 2016

"Delação Premiada" na Filosofia do Direito ou a Construção do "Complexo de Batman"

Nos tempos atuais apenas a filosofia clássica da Antiguidade permanece como farol da humanidade pensante! Tudo o mais ou insiste em ser religião ou justicialismo. Depois de 2500 anos a humanidade permanece tão obtusa como aqueles homens que insistiam em continuar nas sombras da caverna. Agora, contudo, o direito se presta mais à espetacularização hollywoodiana; entre nós, naquilo que chamo de “complexo de Batman”. Este artigo pretende apenas resgatar, se possível, a racionalidade e a justiça social da filosofia dos clássicos e demonstrar como no pensamento ocidental pouco restou de sua originária sabedoria. Precisa ficar afirmado, desde o início, que acredito que a razão cerebrina, pelo menos esta, possa ainda entender que não se pretende defender atos antiéticos e indefensáveis. Sei que corro o perigo das massas desinformadas e as elites inconformadas, verem na Filosofia a anuência a tais atos, pois o medo de uns e o interesse de outros sempre provocaram e perseguiram, à priori, os argumentos mais sensatos, mais prudentes e mais esclarecedores. A assim chamada “delação premiada” é apenas, como se diz nos métodos científicos, o “mote”, o exemplo jurídico a partir do qual tecemos nossas considerações no percorrer da história do pensamento ocidental. Quando religião e norma se juntam ao capital pouco resta de sabedoria, comedimento, bom senso e distributividade.

Quando Sócrates e Platão inauguraram o pensamento filosófico ocidental na Grécia, no séc. V a.C., o foco foi a razão e as ideias, em contraposição ao pensamento cosmológico e a cosmogonia dos pensadores originários (pré-socráticos). Desde então uma ideia – humana – tem o peso da busca da verdade, verdade essa que forma, posteriormente, as ideias no mais alto grau de entendimento. Enquanto isto os Sofistas apregoavam a relatividade das leis e a justiça por convenções.
No séc. IV a.C., Aristóteles, O Filósofo, discípulo de Platão, levou a ideia para a função social, a filosofia para o bem coletivo, a ética a serviço da felicidade. Sendo o homem um zoon politikon (animal político), o conhecimento deve ser capaz de capacitá-lo a fazer as melhores escolhas para a comunidade, e quando isso não acontece falta a ética. Livre para escolher a escolha ética só pode resultar em atos éticos do ponto de vista da sociedade. Justiça é o ato justo do homem justo. Justiça distributiva e justiça corretiva são necessárias para a busca da equidade entre os homens. Ninguém nem nenhum grupo pode estar acima da equidade, pois isso fere a justiça e a ética. Mas Aristóteles, e isto é fundamental, via uma última instância na aplicação da equidade: o ato humano deveria ser julgado na miríade de fatores que determinam o “caso concreto”. A estética matemática, de proporções geométricas (distributividade) ou aritméticas (corretividade), seria ampliada por uma justiça situacional. Logo, a justiça não deve nada à normatividade, e o direito natural se sobrepunha ao direito positivo.
Em seguida, no séc. III a.C., Epicuro de Samos, sugere que o homem sábio dedique-se à vida como se nada antes ou depois existisse. Estando circunscrito apenas nos limites desta vida, o homem deve procurar o prazer, mas ao contrário do que a filosofia cristã medieval apregoou, prazer é tão somente a ausência da dor. Este “jardim dos prazeres” afronta diretamente a patrística cristã, pois o cristianismo tem como fundamento mais o sofrimento que o prazer, pois não podemos esquecer que está fundado sobre a cultura do deserto, nos povos de carência e sobrevivência milenar, cujo sofrer é a própria redenção da alma no além. Mas no epicurismo o prazer deve ser buscado por cada indivíduo; algo daquela equidade distributiva de Aristóteles se modifica. Justiça agora é a razão na procura do equilíbrio individual entre prazer e dor. Porque o sofrimento do outro é também o meu sofrimento.
Os primeiros sintomas vêm agora: no séc. I a.C. o Estoicismo, por exemplo, Marco Túlio Cícero, vai afirmar que a Justiça não está no prazer, mas no dever. Deve-se fazer o que o dever ditar, mesmo que isto traga desprazer aos homens. E isto é justificado pela recta ratio (reta razão). Daí que não existe mais a flexibilidade do “caso concreto”, e a Justiça deixa de ser uma arte. Ela é militar, é de obediência cega à narrativa normativa, à lei escriturária. Se o estoico é um romano – Roma conquista a Grécia -, um homem de ação e de coragem, que não desiste facilmente, por outro lado é exatamente disso que o Cristianismo precisa para a filosofia do sofrimento e da mais absoluta obediência, pela fé, a uma ordem superior.
Quando o Império Romano finalmente se cristianiza, já Paulo de Tarso tinha fundido a filosofia cristã com o estoicismo romano, e já a filosofia grega se havia perdido para sempre. A submissão do homem à “ordem superior”, em sua “Epístola aos Romanos” (Rm 13, 1-2), serviu pra responder aos cristãos o que fazer com os imperadores romanos: obedecer disciplinarmente. Mas como unir esta obediência mundana com a obediência a Deus? Por que se existem imperadores é porque Deus assim o quer, e guarda desígnios maiores e superiores para os homens, que não podem entender pela razão, mas podem obedecer pela fé (Rm 1, 16-17), (Rm 3, 21-24). E a Justiça se baseia no poder da ordem que emana desde Deus para os imperadores, e o justo, claro, é o que obedece com fé. A lei humana e os atos de “caso concreto” nenhuma serventia têm. Daí que fica fácil compreender como o “dever” estoico se funde à “fé” cristã. Nenhuma filosofia anterior poderia servir melhor a essa união. E de tal forma este pensamento se petrificou na filosofia ocidental, que quando Hitler começou o genocídio de milhares de pessoas, o papa Pio XII, de Roma, ficou sem saber como contrariá-lo, pois ele parecia atender a desígnios da “ordem superior”, incompreensíveis aos homens. Restava a fé! E, paradoxalmente, o “povo do deserto” que estabeleceu a crença no Deus único e estabeleceu a fé como a grande esperança e proteção dos homens, foi o que mais sofreu a fúria irracional, a bestialidade e a justiça escatológica dos nazistas. E nada de seus “atos” nem “ideias” serviram para aplacar tal ferocidade.
No séc. V d.C., Sto. Agostinho completou soberbamente a filosofia dos padres cristãos. Mil anos depois de Sócrates tudo o que restou da filosofia humanística foi o além, e nada na terra tem mais importância diante de Deus, que por aqui não está, mas aguarda a todos no céu. Nas Confissões Agostinho irá mais longe na teologia cristã: homens pecadores para sempre pelo pecado original de Adão e Eva (cidade dos homens); só há justiça na “cidade de Deus”; justo o que vive pela fé; Deus derrama a justiça na cabeça de cada indivíduo, escolhido; justiça é individual, não coletiva; nada a ver com distributividade, nada a ver com social, político, justiça não se faz pelo social; nada de “caso concreto”, pois as leis divinas são eternas e as mesmas desde sempre e até o fim dos dias; e o que salva não é a fé, mas a graça de Deus. O pecado é, aqui, “vício mortal”.
Só com Sto. Tomás de Aquino, no séc. XIII de nossa era, o Cristianismo e sua (anti) filosofia conservadora e fechada vão poder respirar novos ares. Tomás de Aquino começa dizendo que o pecado não é um “vício mortal”, mas uma “doença”. Portanto pode ser curada. Partindo disso, o pensamento tomista acrescenta algo que se havia perdido desde Aristóteles, o direito natural: ainda que criado pelas intenções de Deus, as leis da natureza podem ser conhecidas pela razão humana. Então, enquanto a fé serve para conhecer as leis divinas, a razão serve ao homem para entender as leis naturais. E, a partir deste entendimento, e não da fé, os homens podem voltar a constituir leis dos homens. Logo, as leis postas, dos homens, voltam racionalmente a se adequar às situações, à equidade do julgado do “caso concreto”, a possibilidade da comutatividade ou transação, à ação política da distributividade e redistribuição e justiça social. As leis postas, as leis humanas têm uma virtú, se atenderem a predicados voltados para os atos humanos (validade, eficácia, reconhecimento e força). O tomismo, no crepúsculo da Idade Média, deriva de fato o “dever” e a “fé”, e a “graça” de Deus, do poder do rei e do papa para a “virtude” da própria lei. E os “atos” dos homens poderiam salvá-los.
Mas nada iria ser tão fácil e simples para a filosofia e para o direito ocidental. No século XV e XVI, novo dogma se instalou na Europa: a Reforma Protestante. Com a máxima sola fidei (só a fé salva), os protestantes luteranos e calvinistas retomavam a velha concepção medieval dos padres agostinianistas. Naquela teologia conservadora os “atos” dos homens nenhuma diferença fazem para a salvação, nem tampouco para a justiça terrena. Com a “ordem superior” de Paulo (depois São Paulo), e a “fé” abandona-se a filosofia tomista, e mais uma vez a “justiça social”, a “justiça situacional”, a relevância dos “atos” e do “caso concreto” na produção de “equidade”, da filosofia aristotélica, são abandonados. Pelo Protestantismo, portanto, quem não tem fé não pode ser salvo, não importando quem, quando ou como. Por exemplo, entre o massacre de Índios dos novos continentes descobertos a partir de 1500 e o exacerbamento das práticas processuais para os “desalmados” criminosos, pouca diferença existe, mesmo que ditem uma distância de mais de 500 anos; Índios e Criminosos não têm “fé”! Os Índios “sobreviveram melhor” aos colonizadores portugueses e espanhóis, porque sequer sobreviveram aos ingleses e holandeses!
Os católicos, por sua vez, que haviam canonizado Sto. Tomás, diante da discussão teológica que envolvia a colonização e a usurpação das riquezas dos povos encontrados nos novos continentes, a partir do séc. XVI, aceitaram, se não tanto o extermínio sistêmico de Índios, a escravização de negros africanos. Os Índios podiam, pois, ser salvos pelos seus “atos”, e por eles, usando da razão, adquirir a “fé”; os negros não tinham alma, não teriam nunca fé, não precisavam ser salvos, podiam ser mercadoria no novo sistema mercantilista. Mas para poderem transitar entre interesses tão díspares e não sucumbirem positivamente à racionalidade da justiça social e à equidade aristotélicas, os Católicos, se não abandonaram de vez o pensamento tomista, por outro lado se converteram à doutrina jesuítica de novos doutores da teologia, como Francisco Suarez, Francisco De Vitória, Bartolomé de Las Casas e Pd. António Vieira. Este movimento do Catolicismo se chama Contra Reforma, e representa, do ponto de vista filosófico, um Neotomismo.
A “delação” é um mecanismo processual penal medieval, inventado pela Inquisição, no sentido do tribunal obter a confissão do réu. De fato, ela não tinha nada de “premiada”. Cesare Beccaria, em 1764 (Dos Delitos e das Penas), já havia contradito as argumentações “legítimas” da delação/confissão, com a mais simples afirmação, que sob tortura, ou sob intensa coação do soberano ou funcionário de justiça, o réu confessava sua culpa e acusava outras pessoas inocentes só para se livrar do suplício e dos martírios que haveria de sofrer em processo judicial. As Ordenações Filipinas contemplavam nos crimes de lesa majestade (traição contra o rei), a possibilidade de perdão para o “traidor”, desde que não fosse o líder do grupo e delatasse (leia-se, dedurasse) todos os partícipes do delito. Mas o direito positivo moderno resgatou tal instituto para auxílio da Justiça em casos especiais e onde o acusado possa se beneficiar de algum tipo de transação penal, comutação de pena e se amparar diante do rigor da lei. Desde 1990 ela existe no Brasil (Lei 8.072/90 – Lei de Crimes Hediondos). Também na Lei 9.807/99 (Lei de Proteção de Vítima e Testemunhas), que permite a colaboração premiada unilateral, sem a concordância expressa do Ministério Público. Todo réu que colabora, prestando informações úteis, caso tudo se confirme em juízo (com provas do devido processo legal), passa a ter “direito subjetivo” de atenuação (ou dispensa) da pena. Mas foi na Lei 12.850/13 (Lei do Crime Organizado) que nova regulamentação foi dada para a “colaboração premiada” (onde a “delação” é apenas uma espécie). A meu ver nunca a chamada “delação premiada” pode ser usada como moeda de troca da prisão. Menos ainda se estender além da acusação individualizada e da relação pessoalíssima entre a Justiça e o acusado, por, ao servir de moeda de troca de prisão, ferir o próprio dispositivo constitucional de não produzir provas contra si, debaixo de tortura (física ou psicológica), ou coação intensa e arbitrária do Estado/ Justiça, como acontecia exatamente no medievo, nos Estados absolutistas, no período imperial brasileiro e, recentemente, na ditadura militar de 1964-1985.
Na Idade Média a “confissão” e o “suplício” era desígnio de Deus; já os institutos de “transação” penal só apareceram com o advento contemporâneo do capitalismo. De fato, só quando a ideia de troca mercantil e lucro estão solidificados foi possível estender as trocas ao Direito e aos sistemas penais. “Compra quem tem dinheiro”, e a “denúncia” é a moeda de troca da prisão ou de sacrifícios processuais penais sucedâneos. Obviamente o “denuncismo” nada tem a ver com a “colaboração premiada”, e por isso, no direito moderno, em uma sociedade livre e que procura a justiça social, nem os mais conservadores doutrinadores como H. L. A. Hart, John Rawls, Ronald Dworkin e até, eu diria, Miguel Reale, aceitariam sem ressalvas tais práticas intempestivas e inconformistas. Nestes autores ainda existe um quantum de ética, em uma leitura aproximada de Immanuel Kant: um princípio universal, inexcusável e sem exceção, um imperativo categórico moral. Não se trata de defender a corrupção e os corruptos! O que escapa às massas ensandecidas e ávidas por sangue, e aos “juízes” sediciosos e pouco prudentes, é que quem pode pagar por tais benefícios de denúncia são os que têm algo a “vender”. A sociedade de forma geral não tem o que vender ou comprar, portanto, quando nos baterem à porta e nos oferecerem tais mecanismos de delação, como os usar? E os custos processuais e advocatícios que tais institutos demandam? Daí que o mais provável é que seremos todos impiedosamente castigados a partir de uma denunciação injuriosa sem fundamento e fraudulenta. Nossas prisões estão repletas de casos assim! Os soberanos, as igrejas e os ditadores (inclusive os nazistas e stalinistas) sempre usaram estes mesmos mecanismos para amedrontar e promover o medo e a higienização social, contra todos os que ousaram ter coragem para denunciá-los em tais práticas desumanas e bestiais.
Na verdade, o que acontece em nossos tempos e no Brasil é uma volta ao pior período do militarismo, ao nefando Macarthismo, ao escatológico Malleus Maleficarum e uma desatinada imitação de Cícero (como estoico apregoava o “dever” ainda que à custa de muito “sofrimento”), um verdadeiro “complexo de Batman”. Estamos diante de um péssimo Messianismo, um verdadeiro preconceito e perseguição ideológica e uma afronta à ética e ao Estado Democrático de Direito, cujo prejuízo ao País e aos brasileiros será duradouro, possivelmente intransponível pelas gerações futuras. Em minha singela opinião o que o País sofre neste momento ainda é consequência do longo período da ditadura militar recente que impossibilitou de fato e concretamente que a Constituição de 1988 fosse respeitada e realizasse a justiça social para todos os brasileiros. Democracia não é “reformismo” cristão, nem “contra reformismo”; não é a “salvação” divina, não é “Opus Dei”. Uma democracia moderna perene e forte prima pelo legado filosófico laico, pelas instituições de direito livres do rigor do texto bíblico, que prescinda “do fogo que purifica” e da “vendeta”. Precisamos abraçar a racionalidade e a filosofia aristotélica do justo social, da análise equidistante do caso concreto, da flexibilidade situacional, da transação penal, sim, mas sem o preconceito e a aposta à priori do sujeito de direito como bandido e criminoso, portanto sem “fé”, nos moldes do que Torquemada consagrou no Santo Ofício, em meados do século XV, para a bruxaria, bruxas e adeptos possuídos pelo demônio. Nada existe mais perto do extremismo jurídico, do rigor inflexível da Lei e dos “justiceiros judiciais”, do que o rigor da Lei de Talião e da Reforma que abraçou Sto. Agostinho e sepultou para sempre a razão.

SOBRE O AUTOR

José Manuel de Sacadura Rocha é bacharel em Ciências Sociais. Mestre em Administração. Especialista em Criminologia e Vitimologia, Marketing de Varejo, Sistemas de Informação, Mediação e Conciliação. Professor de Filosofia, Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Hermenêutica Jurídica, História do Direito e Metodologia da Pesquisa Científica, tanto nos cursos de graduação quanto nos de pós-graduação. Autor.

Fonte: http://genjuridico.com.br/2016/04/01/delacao-premiada-na-filosofia-do-direito-ou-a-construcao-do-complexo-de-batman/

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