Identificar os problemas de um sistema é fundamental para melhorá-lo, conforme as regras básicas dos manuais de gestores. No entanto, ao apontar falhas na Justiça do Trabalho, o ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, virou alvo de advogados e juízes.
Em entrevista recente, ao jornal O Estado de S. Paulo, Ives Gandra foi direto ao apontar o que, para muitos, é fator de instabilidade na Justiça e economia nacional: “Às vezes, ele [trabalhador] não tem razão nenhuma, mas só de o empregador pensar que vai ter de enfrentar um processo longo, que vai ter de depositar dinheiro para recorrer, acaba fazendo um acordo quando o valor não é muito alto. Isso acaba estimulando mais ações”.
A fala já virou motivo para que a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), com seu presidente recém-empossado, Roberto Parahyba Arruda Pinto, voltasse suas armas contra o encarregado de gerir a Justiça do Trabalho. Para a entidade, o presidente do TST “adota a ‘presunção geral da má-fé’, de que os trabalhadores ingressam com ações trabalhistas, mesmo sem ‘razão nenhuma’, ou seja, para se locupletaram ilicitamente, em destampada agressão à dignidade, à honra e à imagem de cada trabalhador e trabalhadora deste país”.
A nota dos advogados cita a juíza Valdete Souto Severo, que, segundo a própria Abrat, “vocifera”: “É mais difícil assimilar o golpe, quando o ataque vem do próprio TST, sob o pretexto de uma falsa modernização, na qual a palavra de ordem é a livre negociação entre as partes e a fragilização das entidades sindicais”.
As críticas de Ives Gandra à Justiça encontram eco em grande parte do empresariado, no Executivo e no Legislativo, conforme mostrou reportagem da ConJur. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, é um dos que fazem coro. Para ele, “o grande mérito das corajosas declarações do ministro Ives está no fato de elas revelarem a necessidade de se rediscutir e reavaliar o ethos da Justiça do Trabalho”.
Recentemente, Gilmar Mendes afirmou que o Judiciário trabalhista “desfavorece as empresas em suas decisões” e que há um aparelhamento da Justiça do Trabalho por “segmentos do modelo sindical”. Como resposta, 18 dos 27 ministros do TST encaminharam ofício à presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, manifestando “desconforto profissional e pessoal” com o episódio.
Falas do ministro também foram alvo da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), segundo a qual o ministro “alardeia, descompromissada e despersonalizadamente” acusações, manchando o nome das instituições ligadas à Justiça do Trabalho.
Fazendo de críticas sinônimos de ataques, as associações de classe deixam claro que quem discorda de suas posições não deveria falar abertamente. Em sua nota pública, a Abrat afirma que Ives Gandra Filho “imputou a inconstitucional pecha de parcialidade (pelo menos, se não for algo muito mais grave) aos magistrados trabalhistas”, mas, em vez de discutir a questão, os advogados parecem preferir guardar o subproduto da faxina embaixo do tapete, dizendo que “esse é assunto a ser debatido e resolvido internamente”.
Leia a nota da Abrat:
A Justiça do Trabalho e o Direito do Trabalho continuam vítimas de ataques, que são contínuos e permanentes, a indicar que estão sintonizados. E vem por todos os lados. Executivo. Legislativo. Mídia. Todos em orquestra. Agora, de dias para cá, também se vêm atacados pelo próprio Judiciário.
Nesse triste contexto, sobreleva-se a entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo nesse domingo (30.10.2016), pelo presidente do TST, Ives Gandra da Silva Martins Filho, em que este reverbera a mácula costumeiramente pespegada à Justiça do Trabalho, a de superproteger o trabalhador. E o faz com as seguintes palavras: “O que eu sei é que a taxa de improcedência total é muito baixa”; “Sempre que o trabalhador entra na Justiça, ganha alguma coisa.”; “Na pior das hipóteses, consegue um acordo.”; “Às vezes, ele não tem razão nenhuma, mas só de o empregador pensar que vai ter de enfrentar um processo longo, que vai ter de depositar dinheiro para recorrer, acaba fazendo um acordo quando o valor não é muito alto. Isso acaba estimulando mais ações”.
Com esses conceitos, imputou a inconstitucional pecha de parcialidade (pelo menos, se não for algo muito mais grave) aos magistrados trabalhistas, juízes que entendíamos e ainda entendemos serem sérios, imparciais e honestos. Mas esse é assunto a ser debatido e resolvido internamente.
Quanto à advocacia trabalhista, a Abrat está autorizada a objurgar tal pronunciamento, porque desaceita a mácula da inescrupulosidade, a de patrocinadores de ações em que os trabalhadores “não tem razão nenhuma”. Os advogados trabalhistas, independente da parte que defendam, exercem patrocínio honesto, coerente com seu dever ético, mas compromissados com sua função social, em especial o dever/prazer de defender o estado democrático de direito. E sabemos que isso incomoda, notadamente a quem não gosta de cumprir as leis nacionais.
Na entrevista, o eminente presidente do TST adota a “presunção geral da má-fé”, de que os trabalhadores ingressam com ações trabalhistas, mesmo sem “razão nenhuma”, ou seja, para se locupletaram ilicitamente, em destampada agressão à dignidade, à honra e à imagem de cada trabalhador e trabalhadora desse país.
Estranhamente, o ministro presidente nada disse acerca do baixo índice de cumprimento espontâneo do direito material trabalhista pelos destinatários de seus comandos normativos. E omitiu – embora saiba – que esse alto índice de inadimplência advém do fato de que, absurdamente, no Brasil é mais vantajoso ser condenado na Justiça do Trabalho do que cumprir as leis e pagar de forma espontânea. Daí surge o ditado de que o empregador ganha mais com “ações” na Justiça do que com “ações” na Bolsa de Valores.
O ministro Ives destaca na referida entrevista a atitude do empregador em celebrar acordo para deixar de enfrentar uma demanda judicial. Entretanto, silencia a respeito do fenômeno denominado pelos processualistas contemporâneos de litigiosidade contida, em que os titulares dos direitos trabalhistas lesionados deixam, pura e simplesmente, de ingressar com ações. E não revelou que, regra quase absoluta, os acordos são danosos aos trabalhadores, que os aceita por desespero, senão por fome, que os proíbe de suportar demanda por dezenas e dezenas de anos.
Esses acordos predatórios aos direitos e à paz social emergem da falta de efetividade da tutela jurisdicional trabalhista, vez que esta torna extremamente vantajoso para grande número de empregadores, do ponto de vista econômico-financeiro, descumprir as mais elementares obrigações trabalhistas, criando uma verdadeira “cultura do inadimplemento”, em regime de concorrência desleal com a parcela ainda significativa dos empregadores que cumprem rigorosamente suas obrigações trabalhistas, legais e convencionais.
A questão crucial, relacionada ao alto número de ações trabalhistas, omitida pelo presidente do TST, mas que não pode deixar de ser enfrentada pela sociedade, reside na falta de efetividade ou concretude dos direitos sociais.
Como bem dito pelo ministro do TST José Roberto Freire Pimenta: “Quanto mais efetiva a máquina jurisdicional, menos ela vai ter que atuar concretamente, no futuro ou a médio prazo. Simetricamente, quanto mais os destinatários das normas jurídicas souberem que só lhes resta cumprir a lei, por absoluta falta de melhor alternativa, menos será necessário o acionamento da máquina jurisdicional e maiores eficácia e efetividade terão as normas jurídicas materiais. Quanto mais eficaz for a jurisdição, menos ela terá que ser acionada. Enquanto o direito processual do trabalho e o Poder Judiciário trabalhista não forem capazes de tornar antieconômico o descumprimento rotineiro, massificado e reiterado das normas materiais trabalhistas, os Juízes do Trabalho de todos os graus de jurisdição continuarão sufocados e angustiados pela avalanche de processos individuais, repetitivos e inefetivos.”
Como vocifera a juíza Valdete Souto Severo, a Justiça do Trabalho: “E o ultimo reduto do trabalhador despedido sem nada receber, assediado, doente, explorado em suas horas de vida, sem qualquer contraprestação. A Justiça do Trabalho é o local em que alguns direitos ainda se realizam, num contexto em que a ausência de proteção efetiva contra a despedida torna o exercício dos direitos trabalhistas no ambiente de trabalho uma mentira. Que a ataquem os civilistas, os comercialistas, os empresários, pôde-se até compreender. É mais difícil assimilar o golpe, quando o ataque vem do próprio TST, sob o pretexto de uma falsa modernização, na qual a palavra de ordem e a livre negociação entre as partes e a fragilização das entidades sindicais.”
Destarte, o caminho da efetividade dos direitos sociais perpassa pelo fortalecimento, e não pela degradação, da Justiça do Trabalho. E como proclamado por Paulo Bonavides: “Sem a concretização dos direitos sociais não se poderá alcançar jamais a “sociedade livre, justa e solidária” contemplada constitucionalmente como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.”
A Abrat sabe, ministro presidente, que a história é escrita pelos vencedores. Embora alguns digam que estamos a viver um período “após o fim”, não atingimos o tempo de canícula a ponto de tornar invisíveis os vencidos. E a advocacia trabalhista cuida da emancipação, entendo-a como uma maneira de viver enquanto iguais no mundo das desigualdades.
Por isso, o advogado age numa perspectiva de progressividade e não na linha do absurdo e da regressão.
Essas posturas exigem condutas dignas e honestas.
A Abrat o afirma e pede que o ministro presidente do TST tome nota: a advocacia trabalhista atua nessa faixa, honestamente dignificando a paz social e o pratica, limpa e abertamente, no campo próprio, o da Justiça Social cuja sede é ou deveria ser a Justiça do Trabalho, cujos magistrados, como nós, agem com respeito, correção de caráter e zelo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, por Marcos de Vasconcellos, 03.11.2016
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