Em março de 2014, agentes da Polícia Federal saíram às ruas para cumprir mais de 100 mandados de busca, apreensão e prisão com o objetivo de averiguar um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo postos de gasolina e lava a jato de automóveis. Assim começava a Lava Jato, a maior operação contra a corrupção já feita no Brasil.
Desde então, as ações dos policiais federais e dos procuradores do Ministério Público têm ocupado as manchetes dos jornais quase que diariamente. De lá para cá, cerca de 170 pessoas acabaram presas e 106, condenadas. Mais de 20 empresas estão sendo investigadas, sendo que 16 já foram acusadas oficialmente de improbidade administrativa. Estima-se que o montante desviado se aproxime dos 43 bilhões de reais.
Mais do que revelar um esquema de favorecimento e pagamento de propina em funcionamento no país há dez anos, a Operação Lava Jato levantou em toda a sociedade um debate sobre ética, integridade e comportamentos aceitáveis ou não. E colocou em evidência nas companhias a necessidade de criar — ou reforçar — procedimentos contra fraudes.
O castigo para quem comete um crime contra órgãos públicos está mais severo desde 2012, quando entraram em voga as novas regras da Lei de Lavagem de Dinheiro. Mas foi em 2014 que o risco aumentou para as organizações, quando elas passaram a ser responsabilizadas diretamente pelas ações de seus funcionários, com a Lei Anticorrupção. Até então, as corporações podiam alegar que o ato ilícito era uma atitude isolada de um indivíduo. Na maioria das vezes, a pena recaía sobre o servidor público, e tanto a empresa quanto o empregado se livravam da responsabilidade.
Com a nova regra, as companhias não só se tornam responsáveis pelos casos de corrupção — independentemente da comprovação de culpa — como podem pagar multas de até 20% do faturamento bruto anual. Em determinadas situações, a Justiça pode determinar o encerramento do negócio. “Não dá mais para argumentar que não se sabia o que estava acontecendo no escritório”, diz Renato Almeida dos Santos, advogado e sócio da consultoria S2, especializada em analisar e tratar atos de fraude e assédio.
O problema é que nem sempre o mau comportamento e a corrupção são percebidos como tal. Uma recente pesquisa da consultoria EY mostra que, dos 2 825 executivos entrevistados, de 62 países, 42% seriam capazes de justificar uma conduta antiética para cumprir os objetivos da organização e 36% acreditam que esses procedimentos se explicariam caso fosse necessário ajudar a empresa a sobreviver a uma crise econômica. Detalhando as respostas da área financeira, a EY descobriu que 16% desses funcionários fariam pagamentos em dinheiro para obter ou reter negócios importantes para o empregador.
Uma vez que os crimes são realizados (e passam) pelas pessoas, nada melhor do que colocar o líder de recursos humanos também como o guardião das práticas de obediência às leis. Nos últimos anos, houve um aumento no número de profissionais de RH que assumiram as questões de compliance.
Mais do que formular políticas e práticas, o RH deve criar uma cultura voltada à integridade e à transparência nas relações. “O risco organizacional deve ser abordado pela ótica da gestão de mão de obra, pois o fato é que uma empresa é feita de pessoas e o perfil dos funcionários implica diretamente o risco que se corre”, afirma Marco Túlio Zanini, professor de liderança e ética aplicada aos negócios da Fundação Getulio Vargas. “Nesse sentido, a missão primordial do RH é favorecer a difusão do comportamento adequado, adaptando documentos e treinamentos para todos os níveis hierárquicos”, diz.
Muitos dos cursos corporativos realizados após a Lava Jato abordam não só questões como adulteração de números e propina mas também os desvios corriqueiros, como falsificar um atestado de saúde para justificar uma falta ou fazer “um gato” para assistir de graça a programação da TV por assinatura.
A multinacional francesa Air Liquid, que atua no segmento de gases industriais, há três anos exige que todos os seus 1 300 empregados no Brasil participem de um curso online sobre leis anticorrupção. O treinamento mostra situações nas quais as pessoas devem decidir o que fazer. Uma das cenas trata da contratação de bens e serviços; outra, se refere à conduta com grandes clientes, incluindo órgãos do governo.
Antes, a Air Liquid distribuía cartilhas de papel para o seu pessoal, sem a garantia de que eram lidas. Agora o sistema emite alertas no computador do funcionário quando o prazo para a conclusão do curso está chegando ao fim. “Nós controlamos esse registro, pois o RH é auditado, e uma de nossas obrigações é treinar toda a companhia”, afirma José Olmos, diretor de RH para a América do Sul.
Em 2014, a Air Liquid também implantou um canal para receber de seus empregados denúncias de comportamentos estranhos. De lá para cá, cerca de 30 queixas foram levadas adiante e exigiram alguma medida dos executivos. Os casos que envolvem conflitos entre chefe e subordinado são analisados pessoalmente pelo diretor de RH, que se encarrega de fazer entrevistas, reunir provas e tomar as providências. Em todas as situações, as áreas de recursos humanos, jurídica e compliance atuam em conjunto.
A indústria de papel e celulose Suzano foi outra organização que montou recentemente um canal de denúncias anônimas. O relato é registrado por meio de uma central 0800 ou um formulário na internet, ambos administrados por uma empresa terceirizada. “O método assegura total confidencialidade no tratamento das informações. Assim, eliminamos a visão paternalista de que os funcionários devem confiar nos chefes e procurá-los quando há necessidade”, diz Carlos Alberto Griner, diretor de RH.
O executivo defende fortemente a participação do RH nos processos de compliance, pois acredita que dados e estatísticas da área podem ajudar a aperfeiçoar os programas de treinamento e remodelar as políticas de contratação. “Isso tudo entra em sintonia com o movimento que a Suzano vem promovendo nos últimos anos, de descentralizar as tomadas de decisão e dar mais autonomia às equipes”, diz Griner. “Isso significa assumir mais riscos, mas também responsabilidades.”
Além do canal de denúncia, há sete anos, funciona na Suzano um comitê de conduta que atua de forma independente e se reporta diretamente ao conselho de administração. Carlos Griner é o líder do grupo, no qual participam também executivos do jurídico, da auditoria e de controles internos (setor que foi incrementado há um ano para absorver novas atividades de compliance e riscos). “As quatro áreas têm voz ativa e autonomia para tomar decisões. Podemos deliberar sobre o comportamento de qualquer subordinado, do operador de fábrica ao presidente da empresa”, afirma Griner. O canal de denúncia vai reforçar o trabalho da equipe, trazendo informações sobre casos de corrupção, assédio moral, fraudes contábeis e outros.
Iniciativas como as da Suzano e da Air Liquid são uma exceção do mundo corporativo. “O Brasil é um país que reage à corrupção, mas não tem ainda uma cultura de prevenção”, afirma Cynthia Catlett, sócia responsável pela área de investigação de fraudes da FTI Consulting. Segundo ela, é comum encontrar apenas o departamento jurídico ou de auditoria cuidando de aspectos que deveriam ser do compliance e também do RH. “A discussão fica restrita a processos e punições, e não se faz o desenvolvimento das pessoas”, diz Cynthia. As empresas pegas na operação Lava Jato, por exemplo, só agora correram atrás do prejuízo. A Petrobras lançou o seu canal de denúncia sobre fraudes em licitações e contratos apenas em novembro de 2015, um ano após a Lava Jato começar. No primeiro mês, recebeu quase 225 acusações de irregularidades.
O trabalho pela frente é árduo — mas sem volta. “As organizações estão aprendendo que a precaução e a prudência são os melhores caminhos para conservar sua reputação”, diz Cynthia.
Fonte: Você RH, por Bruno Vieira Feijó, 01.11.2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário