Como foi amplamente noticiado pela imprensa, Tribunal do Reino Unido (Employment Tribunals) recentemente reconheceu que os motoristas da Uber devem ser considerados empregados – e não autônomos ou agentes empresariais – para efeitos das proteções legais correspondentes. A ação foi proposta por motoristas da Uber contra a controladora sediada na Holanda e também contra as duas controladas que operam no Reino Unido, a Uber London Ltd e a Uber Brittania Ltd.
Para chegar à conclusão pela existência do vínculo de trabalho (dependent work relationship), o Tribunal, preliminarmente, analisou com cuidado o negócio da Uber, diante do argumento da empresa de que apenas presta serviços de tecnologia. Já no início de sua fundamentação, o Tribunal adverte que qualquer organização (i) que gerencie uma empresa em cujo “coração” está a função de transportar pessoas em veículos motorizados, (ii) que opere em parte por meio de companhia que procura se desviar das responsabilidades “reguladas” aplicáveis aos transportadores privados – ou seja, os PHV – Private Hire Vehicle – operators – mas (iii) que exija dos motoristas e passageiros que concordem, por meio de contrato, que ela não provê o serviço de transporte e (iv) recorra, em seus documentos e cláusulas contratuais, a ficções, linguagem torcida (twisted language) e novas terminologias (brand new terminology) merece certo grau de ceticismo.
Ao aprofundar o mérito, o Tribunal considerou ser claro que a Uber oferta serviço de transporte e emprega os motoristas para esse fim, chegando a afirmar que a defesa da empresa, procurando negar tal fato, teria algo de ridículo: “The notion that Uber in London is a mosaic of 30,000 small businesses linked by a common platform is to our minds faintly ridiculous.”
Um ponto importante para desconstruir a tese de que a Uber seria mero intermediador é que os motoristas não podem negociar com os passageiros, exceto para reduzir a tarifa determinada pela Uber. Dessa maneira, o contrato entre o motorista e o passageiro seria, na verdade, pura ficção: “For all these reasons, we are satisfied that the supposed driver/passenger contract is a pure fiction which bears no relation to the real dealings and relationships between the parties.”
Dentre os inúmeros aspectos explorados pelo Tribunal para justificar a grande ingerência da Uber sobre os seus motoristas e a consequente existência da relação de trabalho, encontram-se os seguintes: (i) o fato de a Uber entrevistar e recrutar motoristas; (ii) o fato de a Uber controlar as informações essenciais (especialmente o sobrenome do passageiro, informações de contato e destinação pretendida), excluindo o motorista destas informações; (iii) o fato de a Uber exigir que motoristas aceitem viagens e/ou não cancelem viagens, assegurando a eficácia desta exigência por meio da desconexão dos motoristas que violarem tais obrigações; (iv) o fato de a Uber determinar a rota padrão; (v) o fato de a Uber fixar a tarifa e o motorista não poder negociar um valor maior com o passageiro; (vi) o fato de a Uber impor inúmeras condições aos motoristas (como escolha limitada de veículos aceitáveis), assim como instruir motoristas sobre como fazer o seu trabalho e, de diversas maneiras, controlá-los na execução dos seus deveres; (vii) o fato de a Uber sujeitar motoristas, por meio do sistema de rating, a determinados parâmetros que ensejarão procedimentos gerenciais ou disciplinares; (viii) o fato de a Uber determinar questões sobre descontos, muitas vezes sem sequer envolver o motorista cuja remuneração será afetada; (ix) o fato de a Uber aceitar o risco da perda; (x) o fato de a Uber deter as queixas dos motoristas e dos passageiros; e (xi) o fato de a Uber se reservar ao poder de alterar unilateralmente os termos contratuais em relação aos motoristas.
Todos esses fatos foram considerados para mostrar que, não havendo propriamente contrato entre o motorista e o passageiro, o foco da relação, no que diz respeito ao motorista, é o contrato que o une à Uber, por meio do qual o primeiro, mediante compensação, torna-se disponível para transportar passageiros da última. Assim, seria absurdo, em tais circunstâncias, imaginar a Uber como cliente do motorista: “And if there is a contract with Uber, it is self-evidently not a contract under which Uber is a client or customer of a business carried on by the driver. We have already explained why we regard that notion as absurd.”
Dessa maneira, entendeu o Tribunal que, na medida em que o contrato formal entre a Uber e seus motoristas não correspondia à realidade, já que o verdadeiro acordo entre as partes estaria localizado no campo das relações de trabalho dependente (dependent work relationship), o ajuste firmado entre as partes poderia ser desconsiderado: “(…) it follows all of the above that the terms on which Uber rely do not correspond with the reality of the relationship between the organisation and the drivers. Accordingly, the Tribunal is free to disregard them.”
Indo além, o Tribunal chegou a afirmar que o contrato formal entre a Uber e seus motoristas decorreria de maquinações de exércitos de advogados, na medida em que não representaria adequadamente os direitos e obrigações de ambos os lados: “This is, we think, an excellent illustration of the phenomenon of which Elias J warned in the Kalwak case of “armies of lawyers” contriving documents in their clients’ interests which simply misrepresent the true rights and obligations of both sides.”
Estabelecidas estas premissas, o Tribunal considerou que os motoristas obviamente não estão “em trabalho” quando o aplicativo está desligado. Entretanto, (i) quando o aplicativo está ligado e o motorista (ii) está dentro do território no qual é autorizado a trabalhar e (iii) tem disponibilidade para aceitar corridas, ele está trabalhando para o Uber sob contrato de trabalho (worker contract). A disponibilidade do motorista foi considerada indispensável para o modelo de negócios da Uber, que, para manter um serviço de excelência, precisa de um pool de motoristas que possa assistir rapidamente seus usuários: “Being available is an essential part of the service which the driver renders to Uber.”
A descrição dos pontos fundamentais da decisão do Reino Unido mostra a tentativa do Tribunal de, ao invés de se render unicamente às formas contratuais e à linguagem dos respectivos instrumentos, buscar a essência do negócio desenvolvido pela Uber e das relações travadas com os motoristas. Por essa razão, o caso pode ser visto como um excelente exemplo de aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma, tão caro para a regulação jurídica da economia.
Não se está, com tal afirmação, negando a complexidade da atividade desenvolvida pela Uber nem os inúmeros aspectos de inovação e eficiência que estão por trás do referido modelo de negócios. Não se está nem mesmo afirmando a plena concordância com todos os fundamentos expostos pelo Tribunal britânico.
Certamente que não está em discussão no momento, pelo menos de forma direta, a questão dos inúmeros benefícios decorrentes de modelos de negócios como a Uber, muitos dos quais transcendem as vantagens individuais dos usuários. Da mesma forma, não estão em discussão várias das preocupações que igualmente decorrem de tal modelo de negócios, como as concorrenciais. Afinal, se os motoristas não são empregados da Uber, mas transportadores autônomos e independentes, tem-se que o serviço da Uber envolve a coordenação de agentes econômicos independentes, inclusive para efeitos de precificação, o que pode gerar graves preocupações concorrenciais.
Faz-se tais advertências para deixar claro que o objetivo do presente artigo não é desenvolver, com profundidade, todos os aspectos positivos e negativos de negócios como a Uber. O que se quer ressaltar é que, independentemente de tais questões – e independentemente do acerto ou não de todos os fundamentos invocados pelo Tribunal britânico – a preocupação de se assegurar o princípio da primazia da realidade deve ser enaltecida, pois esta é a única forma de, em um mundo cada vez mais complexo e sofisticado, pretender regular a atividade empresarial de forma adequada e coerente.
Com efeito, se uma das maiores finalidades da regulação jurídica da economia é a de encontrar o equilíbrio entre poder e responsabilidade, é certo que tal objetivo apenas pode ser atingido se os reguladores e tribunais puderem entender quem, de fato, exerce o poder empresarial e de que maneira o faz, objetivo que exige o necessário confronto entre os arranjos contratuais criados pelas partes e o que estes efetivamente representam em termos de exercício de poder.
No exemplo mencionado, analisando todas as circunstâncias de fato, entendeu o Tribunal britânico que a situação jurídica criada pelos instrumentos contratuais era mera ficção, totalmente descolada da realidade, motivo pelo qual é esta que deveria prevalecer.
Tal lição parece muito pertinente à realidade brasileira atual, em que, na ânsia de flexibilização das relações trabalhistas, tem-se buscado afastar ou mesmo negar o princípio da realidade, ainda que por meio de subterfúgios legislativos.
É o que ocorre com alguns projetos de lei que tratam de disciplinar serviços de transporte como a Uber no Brasil e que já predeterminam que o motorista ou deve ser considerado profissional autônomo ou deve ser considerado empreendedor individual, assim como já predeterminam que os provedores de rede de compartilhamento, em casos assim, não se qualificam como empresas prestadoras de serviços de transporte.
Ora, o que tais projetos pretendem, na verdade, é afastar o princípio da primazia da realidade, qualificando aprioristicamente a situação regulada independentemente do seu substrato fático. Em outras palavras, ainda que as relações entre os motoristas e a Uber tenham características do trabalho subordinado, os projetos afastam a possibilidade de configuração da relação de emprego. E, para isso, ou não se utilizam de nenhum critério ou se utilizam de critérios meramente formais, que nada dizem sobre as características materiais das relações reguladas que fariam com que fossem consideradas empresariais ou autônomas e não relações de emprego.
Parece que a negação da realidade das relações de trabalho é realmente uma inclinação recente do legislador brasileiro, sendo outro exemplo a novíssima Lei 13.352, de 27 de outubro de 2016, que institui o contrato de parceria entre profissionais que exercem atividades de cabeleireiro e congêneres em salões de beleza. Por meio de tais contratos, o salão-parceiro e o profissional-parceiro estabelecem que este último, qualquer que seja a relação que efetivamente estabeleça com aquele, “não terá relação de emprego ou de sociedade com o salão-parceiro enquanto perdurar a relação de parceria tratada nesta Lei.”
O curioso é que, assim como nos casos dos projetos de lei sobre aplicativos de transporte, a Lei 13.352/2016 não explora as características materiais da “parceria” nem o que a distinguiria, do ponto de vista material, da relação de trabalho subordinado. Parece que a verdadeira intenção do legislador é fazer com que a forma adotada – existência de contrato de parceria – possa prevalecer sobre a realidade da relação, mesmo quando esta seja marcada pelos aspectos que caracterizam o trabalho subordinado.
Ora, é claro que, seja diante dos negócios tradicionais, seja diante dos novos modelos de negócio, como os decorrentes da chamada economia compartilhada, podem surgir situações que não se enquadram propriamente no conceito de relação de emprego, o que exigirá ou uma interpretação mais cuidadosa por parte da jurisprudência ou mesmo a interferência do legislador, submetendo-as a uma regulação específica.
Porém, tais situações, exatamente porque se presumem novas, diferentes ou peculiares, precisam ser identificadas por meio de critérios materiais idôneos a distingui-las das hipóteses de trabalho subordinado. Se assim não for, o legislador está simplesmente voltando as costas para a realidade, deixando-se seduzir por definição apriorística que pode não ter qualquer respaldo na realidade.
Outro grande problema das definições apriorísticas e fechadas do legislador nesta seara é a de serem incompatíveis com as noções de obrigação como processo e de boa-fé objetiva, tão caras aos contratos de longo prazo, na medida em que ressaltam que obrigações contratuais não podem ser cristalizadas no instrumento contratual inicial, até porque o comportamento superveniente das partes pode alterá-las consideravelmente. Assim, mesmo uma relação que começa sendo uma parceria pode transformar-se em relação de trabalho subordinado ao longo do tempo. Consequentemente, definições apriorísticas, como as aqui discutidas, acabam sendo verdadeiras “camisas-de-força”, aprisionando a realidade, mesmo que ao custo da sua completa distorção.
Todas essas considerações mostram que o que mais temos a aprender com o exemplo do Reino Unido é que, qualquer que seja a forma de regulação dos novos serviços, esta não pode desconsiderar a realidade, que deve prevalecer sempre que os arranjos contratuais formais dela se distanciem. Da mesma forma, a realidade não pode ser negada ou afastada por meio de subterfúgios legais que não têm outra finalidade senão a de impedir o reconhecimento de relações que, do ponto de vista material, são relações de trabalho subordinado.
Embora a decisão do Reino Unido esteja longe de encerrar a complexa discussão sobre como os novos serviços devem ser regulados em searas importantes, como a trabalhista, serve de alerta para que o tema seja enfrentado no Brasil da forma adequada: a partir do exame atento da realidade e não com base no caminho mais fácil, porém traiçoeiro, dos rótulos, formas ou aparências.
(*) Ana Frazão é Ex-conselheira do Cade, professora de Direito Civil e Comercial na UnB e Advogada.
Fonte: JOTA, por Ana Frazão (*), 01.11.2016
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