O Tribunal Superior do Trabalho promoveu audiência pública no dia 28 de junho para discutir se é vedada pelo ordenamento jurídico a exigência, pelo empregador, de certidão de antecedentes criminais de candidatos a vagas de emprego. Pretende a corte, em Recurso de Revista repetitivo, uniformizar a orientação a ser adotada por toda a justiça trabalhista.
Sabe-se que a Lei 9.029/1995, em seu artigo 1º, veda a “adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho”, enquanto o artigo 4º do mesmo diploma estabelece que o “rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório” garante ao prejudicado, além da reparação por dano moral, a reintegração ao posto, com pagamento em dobro da remuneração relativa ao período de afastamento.
A lei contempla determinadas condutas que considera discriminatórias, como a exigência de comprovação de esterilização ou ausência de gravidez, bem como a promoção do controle de natalidade, as quais caracteriza como crimes. Não dispõe expressamente, no que diz respeito à matéria aqui abordada, sobre a exigência de antecedentes criminais pelo empregador.
Entretanto, a jurisprudência atual do Tribunal Superior do Trabalho considera que o rol presente na referida lei é meramente exemplificativo, qualificando a recusa de contratação em razão de apresentação de certidão positiva de antecedentes criminais como prática discriminatória em relação a ex-presidiários, a ensejar a responsabilização por danos morais e, conforme o caso, a reintegração, na medida em que restaria violada a sua dignidade humana (TST, AIRR-563-55.2010.5.15.0016 Data de Julgamento: 15/06/2016, Relatora: Ministra Maria Helena Mallmann, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/06/2016; TST, E-RR 119000-34.2013.5.13.0007, SBDI-I, rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, red. p/ acórdão Min. Renato de Lacerda Paiva, 23.10.2014, j. 23.10.2014, DEJT 21.11.2014; AIRR-70800-53.2014.5.13.0009 Data de Julgamento: 17/02/2016, Relatora: Ministra Kátia Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/02/2016).
Outro diploma adotado para motivar a vedação da exigência de histórico criminal é a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada ao ordenamento brasileiro pelo Decreto 62.150/1968. Mais uma vez, o texto não aborda especificamente a prática de exigir certidões de antecedentes criminais, mas repudia “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”.
O objetivo que informa o atual posicionamento do TST é abertamente o de proporcionar a ex-presidiários uma melhor inserção no mercado de trabalho. Evitando que potenciais empregadores verifiquem essa característica ao avaliar candidatos a vagas de emprego, supõe o tribunal que mais pessoas com condenação anterior serão contratadas, o que atenderia ao propósito da lei de combater práticas discriminatórias no contexto trabalhista.
Excepcionalmente, o exame do histórico criminal de candidatos seria permitido, tão somente nas hipóteses em que a natureza da atividade a ser exercida pelo empregado contratado justificar a exigência da certidão – por exemplo, no caso em que o cargo almejado requer o acesso a dados sigilosos de clientes (TST, RR-176200-45.2013.5.13.0024 Data de Julgamento: 25/05/2016, Relator: Ministro Walmir Oliveira da Costa, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 30/05/2016; TST, AIRR-5434-77.2012.5.12.0005 Data de Julgamento: 17/02/2016, Relator: Ministro Douglas Alencar Rodrigues, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 26/02/2016).
Há importantes críticas que podem ser dirigidas à corte trabalhista por esse entendimento. A primeira delas é que a invocação de princípios excessivamente abstratos como a dignidade da pessoa humana não seriam suficientes para embasar, por desdobramento lógico, uma medida concreta tão específica, a qual confronta valores, de lado a lado, igualmente ligados a princípios constitucionais.
Outro argumento contrário leva em conta a legitimidade institucional do Judiciário para fazer escolhas públicas sensíveis, envolvendo diferentes fatores sociais que, à luz da configuração Constitucional dos Poderes da República, deveriam ser apreciados pelo Legislativo. Nada obstante, pretende-se aqui tão somente analisar as consequências da orientação adotada pelo TST, a fim de perquirir se o panorama fático decorrente da sua aplicação é ou não conforme aos parâmetros previstos no ordenamento jurídico.
A melhor forma de avaliar uma medida, por certo, é ir além das suas intenções expressas e investigar os resultados que a sua aplicação efetivamente gerou ou é capaz de gerar. Nessa pesquisa, pode-se chegar à conclusão de que a medida não alcançou (ou não pode alcançar) o objetivo que a justificou – basta considerar o caso de que não ocorra, de fato, aumento na contratação de ex-detentos. A análise consequencial pode até mesmo demonstrar que aquela medida causou prejuízo ao propósito cuja promoção se pretendia – se, por exemplo, a contratação de pessoas com antecedentes criminais houver diminuído.
Mais ainda, a providência adotada pode ter gerado outros efeitos secundários indesejados, não compensando os seus benefícios esperados – v. g., na hipótese de a proibição ter provocado menor índice de contratação de pertencentes a grupos identificados como minorias.
Para a realização dessa análise criteriosa, uma audiência pública (limitada a determinados representantes escolhidos pelo tribunal) não é suficiente. Faz-se necessária uma pesquisa empírica independente e não enviesada, capaz de avaliar, com recurso a técnicas de estatística e econometria, o real impacto causado pela vedação da exigência de antecedentes criminais no mercado de trabalho.
Nos Estados Unidos, questão semelhante tomou o debate público (não nas cortes, mas perante o Legislativo, vale frisar). Pressionados por organizações da sociedade civil, determinados Estados e cidades editaram leis proibindo empregadores de questionarem sobre condenações criminais na fase inicial de seleções de emprego.
Essas leis ficaram conhecidas como leis ban-the-box, porque tradicionalmente formulários em seleções do gênero solicitavam aos candidatos marcar “sim” ou “não” em uma caixa de resposta. As especificidades da proibição variam de acordo com o lugar (sete Estados e diversas cidades já editaram leis desse tipo oponíveis ao setor privado).
Em Rhode Island, por exemplo, não se proibiu ao empregador fazer questionamentos sobre a ficha criminal durante ou depois da primeira entrevista, visto que a intenção da lei é apenas permitir aos candidatos com histórico delitivo ultrapassar esse primeiro obstáculo, para que possam explicar melhor ao potencial contratante a situação em que a condenação criminal ocorreu.
Com efeito, naquele país, empregadores têm o dever de diligência na contratação de seus trabalhadores, pois podem responder pelas ações destes perante terceiros, caso tenham falhado em investigar a vida pregressa, inclusive o passado criminal, no momento da seleção (NADICH, Aaron F. Ban the Box: An Employer’s Mediine Masked as a Headache. In: Roger Williams U. L. Rev. 767, 2014).
Já na cidade de New York, o Fair Chance Act (2015) proíbe que empregadores indaguem a aspirantes a vagas de emprego sobre prisões e condenações pretéritas antes da propositura de uma oferta condicional de emprego; uma vez feita a oferta, ela somente pode ser rescindida com base no histórico criminal mediante notificação motivada por escrito e desde que seja concedida oportunidade para resposta em tempo razoável. Por sua vez, New Jersey permite a investigação da vida criminal apenas após a primeira entrevista.
A mesma avaliação proposta linhas atrás, assim, deve ser feita: será que as leis ban-the-box atingiram seu objetivo? Terão elas criado outros problemas sociais? Afinal, como a sociedade reagiu à medida?
Em artigo publicado em 14 de junho de 2016, as pesquisadoras Amanda Agan (Universidade de Princeton) e Sonja Starr (Universidade de Michigan) relatam estudo de campo na cidade de New York e no Estado de New Jersey, EUA, para examinar os efeitos das legislações que proibiram empregadores de requerer de seus candidatos esclarecimentos sobre antecedentes criminais (AGAN, Amanda Y., STARR, Sonja B. Ban the Box, Criminal Records, and Statistical Discrimination: A Field Experiment. In: U of Michigan Law & Econ Research, Paper 16-012, Jun. 2016).
O método da pesquisa consistiu em enviar, pela internet, cerca de 15 mil inscrições fictícias para vagas de emprego destinadas a iniciantes, antes e depois das leis ban-the-box entrarem em vigor. O perfil dos candidatos fictícios variou não apenas em relação à raça (brancos e negros), mas também em outras características que poderiam indicar condenação anterior, como um intervalo de um ano de desemprego no histórico do aspirante à vaga.
Levou-se em consideração que determinadas empresas já não questionavam sobre passado criminal mesmo antes das leis (o que ajudou na comparação de resultados), bem assim mudanças na disparidade racial no mesmo período de tempo. Outro fator observado pelas pesquisadoras foi a composição racial da vizinhança em que os empregadores se localizavam. Todos esses cuidados tiveram o objetivo de tornar os grupos investigados significativamente heterogêneos, de modo que outros fatores interferissem o mínimo possível na análise de inferência causal.
Verificou-se que, no período anterior às leis, candidatos brancos foram selecionados numa proporção 7% maior que candidatos negros com currículo semelhante. Já no período posterior à entrada em vigor das proibições, a disparidade entre a seleção de candidatos brancos e negros subiu para 45%. Separando a análise por jurisdição, tem-se que tanto em New Jersey como em New York os efeitos do ban-the-box foram semelhantes, favorecendo candidatos brancos em detrimento de negros.
Os resultados da pesquisa reforçam a hipótese de que, na falta de informações individuais sobre quais candidatos ostentam condenações, empregadores podem se basear em generalizações estatísticas para discriminar indivíduos com características relacionadas a registros criminais, como a raça – nos EUA, 25% da população negra possui condenação criminal, ao passo que o índice diminui para 6% entre não negros. Assim, candidatos sem antecedentes criminais e que pertencem a grupos com maior índice de condenações, como homens jovens e negros, podem ser adversamente afetados pela proibição.
A conclusão está em harmonia com outros estudos que também indicaram maior propensão à contratação de afrodescendentes por parte de empregadores que realizam apuração do histórico criminal (HOLZER, H.J. et al. Perceived Criminality, Criminal Background Checks, and the Racial Hiring Practices of Employers. In: Journal of Law and Economics 2006, 49:451).
Caso a mesma pesquisa fosse realizada no Brasil, os resultados poderiam ser ainda mais desfavoráveis a grupos minoritários, pois a proibição estabelecida pelo TST não apenas se limita ao primeiro contato com o candidato, mas veda a qualquer momento a rejeição de um empregado, potencial ou efetivo, por motivos referentes ao passado criminal. Em razão disso, há maiores incentivos para que empregadores se baseiem em padrões demográficos com o intuito de evitar a seleção de ex-detentos.
Na falta de pesquisas empíricas adequadas à realidade brasileira, fica comprometida a análise das consequências da proibição estabelecida pela corte trabalhista. Os dados colhidos nos Estados Unidos apontam que a medida antidiscriminação produz o efeito diametralmente oposto ao pretendido, fomentando a discriminação e aumentando o desemprego entre grupos marginalizados. A
dmitindo-se que a conclusão pode representar também a situação no Brasil, trata-se de motivo de grave preocupação, considerando que os índices de desemprego atingiram em 2016 a maior taxa da série histórica do IBGE (10,2%), com um total de 10,4 milhões de desempregados.
Se os operadores do Direito podem fazer algo para reverter este trágico cenário, o primeiro passo é certamente o de substituir as genéricas e meramente retóricas referências à dignidade humana ou similares por um raciocínio dirigido a resultados, com base em métodos empíricos que ajudem a resolver problemas em vez de agravá-los ou criar outros novos.
(*) Bruno Bodart é juiz de Direito no Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, por Bruno Bodart (*), 31.07.2016
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