segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Será o fim dos cargos e dos chefes?

São famosos os casos de empresas da era da internet com poucos níveis hierárquicos, trabalho em times e escritórios divertidos com clima de colégio. Google é um exemplo, Facebook, outro. Agora, uma nova leva de organizações, a maior parte da área tecnológica, vem testando os limites do conceito de gestão horizontal. Ninguém tem chefe, nem cargo, nem metas. Cada um vai atrás do trabalho que quer fazer e negocia suas responsabilidades com colegas.
É o caso do site americano Zappos, que vende roupas e calçados, da produtora de games Valve, também americana, e da brasileira Vagas.com, especializada em recrutamento on-line. Será essa uma tendência ou um experimento que se restringirá a algumas empresas de porte restrito? A Valve tem cerca de 100 funcionários; a Vagas, 160; só a Zappos é maior, com perto de 1,5 mil.
Para Gary Hamel, professor da London Business School considerado pelo “The Wall Street Journal” o mais influente pensador da área de negócios no mundo, hoje o ambiente é propício para o fim das hierarquias formais. Nas décadas de 1960 e 70, modelos de autogestão saíram das fronteiras das cooperativas e foram abraçados por empresas privadas, como a indústria de fluoropolímeros W.L. Gore e a fabricante de molho de tomate Morning Star – e, depois, a brasileira Semco, que ficou conhecida mundialmente após seu dono, Ricardo Semler, escrever o best-seller “Virando a Própria Mesa”.
“Muitos experimentos daquela época foram abortados ou acabaram marginalizados”, afirma Hamel, em entrevista ao Valor. “Hoje, a situação é outra: não dá para acompanhar as rápidas mudanças e alocar recursos rapidamente com estruturas rígidas. É preciso envolver toda a organização no processo de inovação e há a vantagem de a informação fluir mais facilmente.”
Nem todos concordam com o fim dos chefes proclamado por Hamel. Uma das principais referências acadêmicas no estudo de poder das organizações, Jeffrey Pfeffer, da Universidade de Stanford, diz que as empresas não estão mudando tanto quanto se imagina. Em artigo publicado na revista “The Academy of Management Perspectives”, ele argumenta que a hierarquia é indispensável para garantir ordem e segurança.
Estruturas de poder
Uma série de pesquisas vem mostrando que, diante da possibilidade de escolher como se organizar para executar uma tarefa, os participantes acabam preferindo uma forma tradicional hierárquica a modelos alternativos. “Arranjos de poder compartilhado [mesmo modestos como ter coCEOs] continuam extremamente raros, em parte porque tanto as pessoas de dentro como de fora querem saber ‘quem manda’ para que possam entender e cobrar o que se faz na organização”, diz Pfeffer.
Quando estudante na Universidade da Califórnia, a cientista política americana Jo Freeman participou de movimentos feministas que se orgulhavam por não ter liderança. Em 1972, ela escreveu “The Tyranny of Structurelessness” (A tirania da falta de estrutura, em tradução livre) para mostrar que o ideal de um grupo sem nenhuma estrutura de comando não funcionou. As relações de poder permaneciam, só que invisíveis. Sem uma estrutura clara, quem assume a liderança? Pode ser o mais carismático, o mais barulhento, o mais político, aquele com mais tempo de casa, o mais velho ou mesmo o mais novo – tudo vai depender da dinâmica que se estabelece na sombra da organização.
No site Glassdoor, que permite a funcionários e ex-funcionários escreverem anonimamente os prós e contras dos seus empregadores, essa questão das relações informais aparece com frequência nas avaliações de empresas sem uma estrutura formal. Por exemplo, no caso da Vagas, um funcionário com mais de cinco anos de casa diz: “Se você não se der bem com algumas pessoas mais influentes, tchau!” Outro empregado reclama dos “bajuladores”, dos “manipuladores de plantão”, dos “papos de corredor” e diz que alguns colegas não entregam as promessas no prazo acordado e nada acontece. “Se você não tem estômago para viver nessas guerrinhas e fazer politicagem e só quer fazer seu trabalho, pode encontrar muitos problemas no caminho”, afirma.
O engenheiro Mário Kaphan, sócio da Vagas, demonstra certa frustração quando comenta as críticas expostas no Glassdoor: “Por que, em vez de se manifestar anonimamente, essas pessoas que estão aqui dentro e têm contribuições para melhorar a empresa não colocam suas questões abertamente?”
É que a Vagas tem como política estimular o debate. Quando um funcionário acha que há algum aspecto que pode ser melhorado, ele pode abrir o que a empresa chama de controvérsia. O grupo envolvido na questão então se reúne para discutir a controvérsia e precisa chegar a um consenso do que fazer. “Aqui se espera que os funcionários se manifestem”, diz Kaphan. “Acho que no Brasil, por causa dessa cultura da cordialidade, há mais dificuldade das pessoas em se abrir e dar um feedback.”
A gestão do século XXI
As controvérsias na Vagas não são esporádicas. Além dos aspectos comuns em avaliações de recursos humanos – como o nível conhecimento e a contribuição para os resultados – os funcionários são analisados também pelas suas iniciativas em expor controvérsias, pela capacidade de se desapegar de suas ideias quando necessário e pela participação das decisões em consenso.
O exemplo da Vagas com a gestão horizontal foi premiado pela The Management Innovation eXchange, projeto que pretende “reinventar a gestão do século XXI” liderado por Gary Hamel. Kaphan adotou o modelo de gestão sem hierarquia como forma de manter o espírito de empresa pequena de seu empreendimento, criado há 16 anos, que hoje conta com 160 funcionários.
O modelo da Vagas já vem sendo adotado há muitos anos, mas somente em 2013 foi formalizado, com a ajuda de consultores como Pedro Zanni, da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. “O grande desafio desse tipo de modelo de gestão são os incentivos, é preciso ter regras muito claras”, observa Zanni. Nas organizações sem hierarquia, há a substituição de uma estrutura por um processo estruturante”, afirma Ethan Bernstein, professor de liderança e comportamento organizacional da Harvard Business School.
A Vagas ainda está tateando para entender quais incentivos e regras são adequados. “É um trabalho de construção permanente”, conta Kaphan. Em toda reunião, há cadeiras vazias, que podem ser ocupadas por funcionários de qualquer área. Em 2014, houve uma “explosão de participação”, nas palavras dele. Se por um lado esse comportamento foi considerado positivo, por outro, trouxe o risco de tornar o processo de decisão mais moroso e custoso. Então, no planejamento estratégico de 2015, um aspecto novo, o custo de participação nas reuniões, entrou em consideração. “Hoje, quem decide ocupar as cadeiras vazias o faz com mais consciência”, diz Kaphan.
Os funcionários da Vagas organizam-se em equipes funcionais (como recursos humanos e finanças) e também em comitês, de acordo com a necessidade. Algo que também foi mudando na Vagas é o tamanho desses comitês. Com mais de oito membros, Kaphan percebeu que fica muito complicado chegar a um consenso. No site Glassdoor, vários funcionários e ex-funcionários sugerem que a prática de consenso é “balela”, como diz um deles, e que quem acaba decidindo é o dono, ou seja, Kaphan. “O dono manda, sim, mas justamente o dono mandou que ninguém mandasse”, admite. Kaphan diz que adoraria que seus funcionários expusessem essas questões nos encontros quinzenais abertos com ele, “mas é muito difícil quebrar esse preconceito em relação ao dono”.
Remuneração secreta
Outro aspecto sensível na Vagas é o da remuneração. Os funcionários passam pela chamada avaliação 360 graus, ou seja, se avaliam e avaliam todos da equipe. Em três anos, a Vagas já mudou três vezes sua metodologia. Se antes a avaliação dos colegas era anônima, por questionário, agora é feita “olho no olho”, nas palavras de Kaphan. A ideia é trazer maior transparência para um aspecto que é o balizador da remuneração de cada um. Mas os salários permanecem oficialmente secretos, o que também pode levar a especulações. “A Vagas já acabou com o anonimato na avaliação de desempenho, o próximo passo até pode ser o de abrir os salários, só que isso tem que ser feito com muito cuidado, pois é um caminho sem volta”, alerta o consultor Zanni.
A inspiração para a remuneração confidencial na Vagas veio de um dos modelos nos quais Kaphan se inspirou, o da W.L. Gore. “O salário é como se fosse a propriedade intelectual da empresa”, afirma Giuliano Li Puma, líder de vendas da filial brasileira da W.L. Gore. Conhecida por fabricar o tecido impermeável Gore-Tex, a empresa foi fundada em 1958 pelo engenheiro químico americano Wilbert Gore já com um modelo sem chefias formais e hoje conta com mais de 10 mil empregados em 30 países.
Na W.L. Gore, ninguém oficialmente manda em ninguém. Mas as funções são definidas e todos precisam assumir, e cumprir, compromissos. Não há um modelo de controvérsias e consensos como na Vagas, porém, assim como nesta, provavelmente há mais reuniões do que numa empresa tradicional. “Mas, uma vez que a decisão é tomada, a execução é rápida, pois todos foram envolvidos no processo”, argumenta Puma, que afirma que só possui a função de líder por ter seguidores que o escolheram. “É muito difícil ser líder na Gore, pois aqui você não é avaliado por estar no centro da atenção, mas por como faz que os times trabalhem, que as pessoas consigam mostrar seus pontos de vista e trazer novas ideias conjuntamente”.
Na W.L Gore, empregados avaliam e colocam num ranking entre 20 ou 30 colegas e a partir daí a remuneração de cada um é decidida. No Glassdoor, vários funcionários reclamam que esse método funciona como um “concurso de popularidade”. Por outro lado, argumenta Hamel, numa hierarquia formal, a única pessoa a quem é preciso agradar é o chefe, o que provoca ainda mais distorções. “A W.L. Gore não é perfeita, mas tem estado continuamente na lista das cem melhores empresas para trabalhar da revista ‘Fortune'”, afirma Puma. “É uma empresa fascinante, mas não é para todo mundo; quem é muito agressivo, tem visão de curto prazo e se preocupa com o título que possui pode se decepcionar.”
De fato, em todas empresas com modelos de gestão não tradicionais, há um índice razoável de funcionários que não se adaptam. Por exemplo, em uma das empresas que adotam esse modelo cada candidato assiste a uma apresentação de duas horas sobre autogestão e é entrevistado por de 10 a 12 funcionários. Mesmo assim, cerca de 50% dos empregados deixam a empresa até dois anos após a contratação. Para os defensores do fim das hierarquias, estatísticas como essa ocorrem ou porque as pessoas não querem abrir mão do comando, ou porque não têm habilidades políticas para negociar, ou ainda porque não conseguem ter iniciativa para buscar os próprios projetos e aprimorar seus talentos. Para os críticos, a culpa é de modelos ineficientes e sem consistência.
As questões de recursos humanos – contratação, remuneração, promoção, demissão – estão entre as mais sensíveis nos modelos de gestão não hierárquicos. Ter processos abertos e transparentes com a participação de todos é fundamental, segundo Hamel. O problema é que dificilmente as informações de RH são totalmente abertas, como se percebe nos casos da Vagas e W.L. Gore.
Processo de avaliação
Outro exemplo é o da americana Valve, fundada em 1996 por um ex-funcionário da Microsoft, Gabe Newell. A empresa, que produz games como Half Life e Day of Defeat, ficou famosa ao publicar, em 2012, um irreverente e público guia aos novos funcionários com o subtítulo “Uma destemida aventura para saber o que fazer quando ninguém está ali para lhe dizer o que fazer”. No guia, há ilustrações divertidas para tarefas como mover a mesa de trabalho – que vem com rodinhas – e a de dois homens lado a lado no mictório para exemplificar como é possível saber “o que está rolando” na empresa.
No Glassdoor, no entanto, há menções sobre o que qualificam de pouca transparência no processo de avaliação, que é feito por um ranking similar ao da W.L. Gore. Para Hamel, o caminho para uma organização sem chefes é mesmo difícil. Não há uma fórmula e cada empresa tem que ir testando, aos poucos, o que funciona em seu contexto. “Isso não se faz de uma dia para o outro, é uma jornada, você tem que ir evoluindo passo a passo para conseguir uma revolução, tem que começar com uma série de princípios e não com uma metodologia fechada.”
Hamel faz crítica indireta à experiência da Zappos, empresa que começou com a venda on-line de calçados e hoje comercializa também roupas. A Zappos virou há alguns anos referência em atendimento ao consumidor. “Entregue o serviço WOW [uau!]” é o valor número 1 na empresa fundada pelo guru de empreendedorismo americano Tony Hsieh em 1999 – e vendida à Amazon em 2009. Hsieh continuou no comando da Zappos e, em março, anunciou que todos cargos seriam abolidos e adotaria um modelo chamado de holocracia. Quem não aderisse até 30 de abril receberia um pacote de compensação para deixar a empresa. A baixa foi de 14% dos 1,5 mil empregados.
Holocracia vem de “hólon”, conceito criado pelo intelectual húngaro-britânico Arthur Koestler a partir do grego “holos”, “todo”, para explicar que tanto em sistemas biológicos como sociais há partes que atuam de maneira autônoma e também em dependência com outras partes. A holocracia virou negócio nas mãos do consultor Brian Robertson, que licencia um software chamado Glass Frog para administrar essa forma de organização.
Os funcionários da Zappos trocaram cargos por papéis, que são múltiplos e cambiáveis. Eles passaram a trabalhar não em departamentos, mas em “círculos” autoadministrados. “Os círculos nascem da necessidade de algum trabalho ou objetivo”, afirma Brironni Alex, que trabalha no círculo criado para a implementação da holocracia. “Nosso time ajuda no processo educacional e nas reuniões iniciais e depois os círculos ficam responsáveis por se organizar sozinhos.” Há líderes e não chefes, que, de início, vieram dos gestores e agora começam a brotar “naturalmente”. Alguns círculos são mais importantes que outros, e todos se dirigem ao círculo-âncora, formado pelo conselho da empresa.
Para Hsieh, não se trata apenas de dar outro nome para a mesma estrutura, pois ele diz acreditar que todos possam ter mais poder na holocracia, embora em níveis desiguais. Para resolver conflitos que naturalmente aparecem em qualquer organização, há um mecanismo parecido com o da Vagas: as “tensões” são colocadas nas reuniões e dão a direção do que precisa ser feito.
Espaço dos porquês
A Zappos vem criando uma biblioteca de classificação de habilidades – para que todos os empregados saibam qual é o valor de cada uma. Esse sistema é ligado a outro, de pontos. Cada papel tem um número de pontos e todos têm a obrigação de manter ao menos cem pontos. Quem não alcançar o patamar mínimo vai para o limbo – primeiro chamado de “Praia”, depois de algo que pode ser traduzido como “Espaço dos Porquês” e enfim rebatizado de “Jornada do Herói” – e tem a chance de achar novos papéis antes da demissão.
Se o sistema ainda vai dar certo, é cedo para dizer. “Ainda há muitos nós a ser desfeitos”, diz Alex. “Nós estamos aprendendo muito; no início, ficamos preocupados com a velocidade de implementação e agora percebemos que mais importante é prestar atenção na qualidade das práticas em cada círculo”. Nesse período de transição, a Zappos vem claramente sofrendo desconfiança de fora e dentro da organização. Saíram diversas reportagens na imprensa internacional – por exemplo, na revista “The Economist” e no jornal “The New York Times” – criticando o modelo. A posição da empresa na lista das melhores para trabalhar da revista “Fortune” caiu de 38 em 2014 para 86 em 2015.
De acordo com o Management Lab, organização californiana de apoio à inovação gerencial capitaneada por Hamel, empresas com sistemas de autogestão alcançam, em média, produtividade 30% superior à de companhias com hierarquias tradicionais. Segundo quem defende modelos de autogestão, a informação vai para onde tem que ir, as pessoas podem assumir novas funções sem apego a cargos, todos se empenham porque se sentem responsáveis pelos rumos do negócio. Mas, fora o estudo do Management Lab, que é um defensor das novas formas de organização, não há muitas outras pesquisas sobre o assunto.
A holocracia e os sistemas parecidos pretendem reduzir as disputas de bastidores ao eliminar a hierarquia formal e fazer que as relações informais de poder se tornem explícitas. É, no entanto, paradoxal que as reclamações dos funcionários no Glassdoor estejam tão concentradas nas disputas subterrâneas. Ao que parece, seja qual modelo for, as organizações sempre serão hierarquicamente complicadas.

Fonte: Valor Econômico, por Adriana Wilner, 22.01.2016

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