A questão sobre qual será o futuro do trabalho, pode ser encarada sob dois prismas: como nós gostaríamos que fosse esse futuro; ou: como as circunstâncias e tendências atuais indicam que ele deverá ser.
O primeiro enfoque remete a reflexões filosóficas, bastante temerárias para quem filósofo não é. Daí que convém ser breve, nessa primeira abordagem. Será bastante considerar que essa projeção de futuro, esse “wishfull thinking” dependerá de como valoramos o trabalho humano.
Das raízes da cultura judaico-cristã, provém uma valoração negativa, que atribui ao trabalho um sentido de castigo, senão de ignomínia. “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”. Os milhares de anos em que a escravatura e a servidão vigoraram como instituições, até nas civilizações mais desenvolvidas, fincaram profundamente o estigma nas mais diversas culturas. Na Grécia antiga, contrapunha-se a vida contemplativa, própria dos filósofos, ao trabalho manual, deixado aos escravos, ou, de alguma maneira, às mulheres e às crianças; o “otium”, do homem livre, sábio, virtuoso e genuíno cidadão, era o oposto do “negotium”, o trabalho propriamente dito, identificado como o principal obstáculo para alcançar as virtudes do verdadeiro homem.
É bem verdade que o cristianismo redimiu em boa medida a dignidade do trabalho, no simbolismo do Filho de Deus carpinteiro e pescador, bem como reconhecendo nele um caminho para a santidade. Não obstante, a divisão medieval, entre as artes “liberais” — as “liberadas” do esforço físico — e as servis, manteve-se e até acentuou a distinção entre contemplação e ação, entre vida intelectual e trabalho manual, entre o nobre diletante e o servo trabalhador. Essa dicotomia chegou à era moderna, consistindo o substrato cultural do mercantilismo e da revolução industrial (Prieto, Pablo. darfruto@terra.es), e conserva-se presente na atualidade, especialmente no imaginário brasileiro, profundamente marcado pelo bacharelismo lusitano, pelo longo período de escravagismo e por uma ética do trabalho muito mais de feição católica do que protestante.
Ainda na encíclica “Laborem exercens”, de 1981, do recentemente falecido João Paulo II, remanesce essa conotação de penosidade, ainda que ungida como oportunidade de participar na obra divina:
“O suor e a fadiga, que o trabalho necessariamente leva na condição atual da humanidade, oferecem ao cristão e a cada homem, que foi chamado a seguir o Cristo, a possibilidade de participar com amor na obra que Cristo veio realizar. Esta obra de salvação realizou-se através do sofrimento e da morte na cruz. Suportando a fadiga do trabalho na união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora de certo modo com o Filho de Deus na redenção da Humanidade. Mostra-se verdadeiramente discípulo de Jesus, levando por sua vez a cruz de cada dia na atividade que foi chamado a realizar”. (Laborens exercens, 27)
Mas, é na mesma encíclica que surge a outra perspectiva do valor do trabalho:
“[…] o homem, criado à imagem de Deus, mediante seu trabalho participa na obra do Criador, e na medida de suas próprias possibilidades, em certo sentido continua desenvolvendo-a e a completa, avançando cada vez mais no descobrimento dos recursos e dos valores encerrados no todo criado”. (Laborens exercens, 25)
Nessa outra visão, “o trabalho é reconhecido como uma das realidades mais importantes da vida humana”, pois é:
“Testemunho da dignidade do homem.
Oportunidade de desenvolvimento de sua personalidade.
Vínculo com os demais.
Fonte de recursos para o sustento da família.
Contribuição para melhorar a sociedade.
Fonte de progresso da humanidade.
Elemento fundamental da vida humana.”
(Gómez, Javier Abad. El valor de la fé. Internet)
Hana Arendt sintetiza essa abordagem do trabalho, como condição inafastável da condição humana, em uma só frase:
“Não há sociedade pós-laboral. Ou há trabalho ou não há nada.”
A sensibilidade pós-moderna e globalizada introduz a nova perspectiva, com o multiculturalismo, a promoção da solidariedade, o ecologismo, o feminismo, etc., ampliando o conceito de trabalho, de forma a superar as velhas oposições entre competição e cooperação, produção e criação, eficiência técnica e relações humanas. Somos agora mais conscientes de que dentro do trabalho há muitas coisas mais que trabalho, na acepção estreita da palavra. Que o verdadeiro trabalho, aquele assumido pela pessoa consciente, compreende uma grande variedade de ingredientes, até agora desconsiderados. Em outras palavras, que o negotium não só não se opõe ao otium, como ambos necessitam complementar-se, com um conseqüente benefício, tanto para o mundo laboral como para o descanso e o divertimento (Prieto, Pablo.darfruto@terra.es).
Um autor contemporâneo, que se celebrizou como defensor da sociedade do ócio — Domenico De Masi —, afirma que “o caminho milenar do homem consiste na persistente vontade de libertar-se da atávica escravidão da miséria, da fadiga, da ignorância, da tradição, da autoridade, da dor, da feiúra e da morte”. Progresso é o que entendemos como a aproximação destes ideais. E este vem ocorrendo ao longo da história, com vários reveses, mas numa trajetória constante que tende do esforço manual ao emprego de tecnologia, da simplicidade à complexidade, da causalidade à planificação, enfim, da execução à criação, sempre com o objetivo de colonizar a natureza através da cultura.
Muito raramente, essa caminhada contínua tem experimentado “saltos épicos”, tendo sido os dois últimos a revolução industrial e, agora, o advento da sociedade pós-industrial. Nesta, a qualidade de bens produzidos está cada vez menos ligada à quantidade de trabalho humano e mais à do conhecimento e do trabalho executivo dos cidadãos do Primeiro Mundo, onde ocorre, cada vez mais, o fenômeno do “desenvolvimento sem trabalho”.
De Masi antevê, assim, a possibilidade de pôr fim à condenação do trabalho penoso, delegando-se às máquinas “tarefas físicas e intelectuais cada vez mais numerosas e complexas”. Mas reconhece que a atual “divisão internacional do trabalho permite aos países da OCDE delegar às populações do Terceiro Mundo as tarefas mais repetitivas, cansativas, enfadonhas, alienantes, despojadas de criatividade”. E que, mesmo nos países ricos, o “desenvolvimento sem trabalho” é mal administrado e tende a atingir níveis intoleráveis de desemprego.
Sem aceitar o resgate de qualquer forma de trabalho como compatível com a dignidade humana, De Masi retoma o conceito grego do trabalho verdadeiramente digno, dando-o como uma possibilidade futura, desde que os avanços da tecnologia sejam acompanhados por uma grande reformulação das instituições e do modo de vida em geral, “em função não só do trabalho, mas também do tempo livre, de modo que ele não degenere em dissipação e agressividade, mas se resolva em convivência pacífica e ócio criativo”. Para tanto, prega ele, “é preciso criar uma nova condição existencial em que estudo, trabalho, tempo livre e atividades voluntárias se entrelacem e se potencializem reciprocamente […] um ambicioso plano de reeducação e um amplo pacto social que objetive a redistribuição mais justa do trabalho, da riqueza, do saber e do poder” (De Masi, Domenico. O futuro do trabalho).
Quem poderá discordar de De Masi, nessa visão desejosa do futuro do trabalho e do mundo?
Entretanto, ele mesmo adverte que isso não se realizará sem que grandes e essenciais mudanças se processem nas instituições atuais e, principalmente, na educação dos povos. Pois o que hoje se tem, no mundo do trabalho — não obstante todos os vertiginosos avanços da tecnologia e do conhecimento humanos — é o desemprego crescente, que atinge tanto a pobres quanto a ricos, ainda que de forma diversa: àqueles, faz sofrer com privação e desesperança; a estes, impõe a insegurança crescente e o sentimento de culpa de uma sociedade que se assume injusta.
A questão do emprego — ou, mais amplamente, da criação de oportunidades de trabalho — está no centro da cena política, exigindo dos governantes uma resposta convincente e tranquilizadora, que toma forma – nem sempre nítida – nas propostas das diferentes facções. Para alguns, da chamada esquerda, o mal provém do neoliberalismo, que coloniza o mundo através dos grandes grupos transnacionais, com suas práticas desumanas e desumanizantes. Para estes, a resposta estaria em resistir contra a chamada globalização, na busca de uma economia baseada em valores próprios de nosso ambiente e da nossa tradição. Para tanto, pregam a adoção de firmes políticas governamentais, proteção do mercado regional, reforma agrária e apoio à agricultura familiar, estímulo aos pequenos negócios, tudo aceito como solução para a geração de empregos e distribuição de renda. E, por isso, olham com desconfiança os grandes projetos, intensivos em capital e tecnologia, acusando-os de cortarem postos de trabalho e concentrarem riqueza.
Na verdade, os avanços tecnológicos sempre chocaram as sociedades estabelecidas, a ponto de serem rejeitados, mesmo quando evidentes seus benefícios para a maior produtividade do trabalho humano e, conseqüentemente, para a esperança de uma melhor qualidade de vida para os trabalhadores. Não é necessário referir o pânico gerado pela máquina a vapor e o tear mecânico, na primeira revolução industrial, mas é interessante lembrar o que narra o mesmo De Masi: quando o imperador Vespasiano reconstruía o avariado Capitólio, um artesão ofereceu-lhe um inovador dispositivo, capaz de transportar as pesadas colunas de mármore, colina acima, poupando o esforço de muitos homens. Que fez o imperador? Deu um prêmio ao inventor, mas … proibiu que se utilizasse o invento, porque provocaria desemprego.
Ao longo do tempo, a “Síndrome de Vespasiano” vem retardando a difusão do progresso tecnológico, sem, entretanto, trazer melhoria de vida aos da sua época, como não a tiveram os escravos do césar. Mas, os povos que souberam neutralizar a “Síndrome” saltaram à frente dos demais, como os de Inglaterra, França e Alemanha, que, sendo os primeiros a enfrentar a crise do desemprego do século XVIII, foram também os que tomaram a ponta do desenvolvimento industrial e do progresso social que ele ensejou.
A formidável transformação por que passa o nosso mundo traduziu-se numa irreversível globalização, não apenas da economia, mas dos usos, costumes, valores e, conseqüentemente, das necessidades humanas. Se é verdade que a triste realidade nacional ainda nos põe frente ao desafio de matar a fome de milhões de irmãos nossos, também é certo haver muitos mais milhões de brasileiros que não se satisfarão com níveis da melhor qualidade de vida propagandeada pela mídia sem fronteiras (e, nesta exigência, a estes virão se juntar aqueles outros, tão logo consigamos cumprir o dever patriótico de arrancá-los da miséria).
Só há um caminho para a Humanidade e este não é o da volta ao passado (marcado muito mais por injustiça, sofrimento e frustração, do que pelo bucolismo lembrado pelos saudosistas); é o da busca de uma transformação cultural, tão rápida quanto os avanços da ciência e da tecnologia, que se traduza em uma nova organização sócio-política, capaz de utilizar estas conquistas da mente humana para partilhar democraticamente suas benesses, redistribuindo o trabalho e o saber, bem como a riqueza e o poder por eles gerados.
Existe uma revolução em curso, a maior de todas quantas já viveu a humanidade. Ela não se deterá em função de nossos temores frente ao novo, ou do conservadorismo de tradições e ideologias ultrapassadas. É com um esforço solidário para aumentar a eficiência de nossa economia e da gestão pública, eliminando os desperdícios e concentrando-nos na aquisição e na difusão do conhecimento, que haveremos de conquistar, para os brasileiros, a possibilidade de que todos trabalhem, sem terem que renunciar à melhor qualidade de vida que o progresso humano ofereça aos mais capazes.
(*) Ex- Conselheiro da Organização Internacional do Trabalho.
Fonte: Relações do Trabalho, por Dagoberto Lima Godoy (*), 18.01.2016
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