Para Patrícia Almeida Ramos, presidente da Associação dos Magistrados de Justiça do Trabalho de São Paulo, projeto de lei em discussão no Congresso que autoriza a terceirização de funcionários em qualquer atividade de uma empresa simboliza um "retrocesso muito grande em toda a discussão sobre direitos trabalhistas das últimas décadas".
Em entrevista concedida à Folha, a juíza discorda que terceirização ilimitada reduza o desemprego e traga segurança jurídica. Ela avalia que a terceirização cria "carcaças de empresas", que acabam com um referencial claro sobre quem é responsável pelos funcionários, o que "interessa apenas aos empresários".
Folha - A CUT [Central Única dos Trabalhadores] diz que os juízes do trabalho são todos contrários ao PL da terceirização. Isso é verdade? A opinião contrária ao projeto é hegemônica entre os magistrados?
Patrícia Almeida Ramos - Sim, existe uma mobilização de juízes do trabalho e de associações de magistrados para tentar barrar esse projeto que, se aprovado, significará um retrocesso muito grande em toda a discussão sobre direitos trabalhistas das últimas décadas.
A Anamatra (Associação Nacional de Magistrados Trabalhistas) e as Amatras (Associações Regionais de Magistrados Trabalhistas) têm se manifestado publicamente contra o PL 4330. Temos feito cartas abertas à sociedade e reuniões com deputados para disputar a opinião pública. Acho que os trabalhadores ainda não entenderam a gravidade da situação, se entendessem as mobilizações de rua seriam maiores.
Folha - Um dos pontos do PL é a criação de um fundo "caução" de 4% dos contratos para casos em que a empresa terceirizada não recolhe os impostos. Nesses casos, caberia à contratante arcar com os custos, usando esse caução. Paulo Skaf argumenta que isso daria segurança aos trabalhadores. O que a senhora acha?
Na verdade isso seria criar um subterfúgio já prevendo que as terceirizadas não pagariam os impostos, que de fato é uma situação muito comum nessas empresas, não recolher fundo de garantia, atrasar salários. Nós não queremos criar subterfúgios, criar um problema e daí vir com um remendo de solução, nós queremos manter um direito historicamente constituído.
Folha - Há muitos casos de empresas terceirizadas que não pagam direitos? A senhora acredita que eles podem se multiplicar com a nova lei?
A Justiça está abarrotada deles –trabalhadores que de um dia para noite são dispensados sem nada receber, porque a empresa, terceirizada, perdeu o contrato com a tomadora de serviços.
Sabemos que a contratação de empresas terceirizadas afronta o princípio da isonomia salarial. Em geral, o empregado "terceirizado" recebe salário inferior comparado ao empregado formal, na mesma colocação.
Na mesma linha, acidentes e doenças do trabalho sobem vertiginosamente no caso dos empregados terceirizados, pois as empresas podem não ter condições técnicas e/ou financeiras para investir em segurança e melhores condições de trabalho. Isso em um contexto em que a terceirização é autorizada [atualmente quando usada para as chamadas "atividade meios", como limpeza e segurança].
Muitas empresas buscam formas criativas de burlar a CLT. Recentemente, o Poder Judiciário recebeu uma leva de processos por conta de cooperativas; estas muitas vezes eram empresas disfarçadas que atuavam legitimadas pelo parágrafo único do artigo 442 da CLT, preciso ao declarar que não há vínculo empregatício entre a entidade e os associados. O que notamos é que todo esquema de trabalho que tenta despersonalizar as coisas e criar intermédios acaba gerando mais problema trabalhista. Assim, o contingente de demandas trabalhistas, com a aprovação do PL 4330, tende a se multiplicar, de fato.
Folha - A senhora conhece casos de demissões significativas para forçar recontratação por terceirizada e, assim, baixa de salários?
Estes casos fazem parte do cotidiano da Justiça do Trabalho. Diariamente nós, Magistrados, nos deparamos com demandas em que empregados são lesados por perderem seu posto de trabalho, em prol da diminuição de custos e contratação de mão-de-obra mais barata. É muito comum a extinção de departamentos inteiros e a substituição por trabalhadores terceirizados ou "pejotizados". E isso, repito, considerando somente o universo em que terceirização é autorizada: atividade-meio. Imagine o que acontecerá se autorização de contratação de empresa terceirizada for ilimitada.
Folha - Que benefícios costumam ser suprimidos em caso de terceirização?
Há um enxugamento geral dos custos com o trabalhador através da redução de seus direitos: redução de salários e a extinção de benefícios convencionais em geral, como vale alimentação e pagamento de horas extra, por exemplo.
Folha - Quais os problemas criados pela atual legislação para as empresas? Elas não têm nenhum argumento bom, em termos de ganhos de eficiência e "segurança jurídica"?
Esse argumento da segurança jurídica é problemático. A empresa que atua na legalidade tem segurança jurídica, ninguém está sendo condenado por cumprir a legislação. A Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) –em vigor há anos– é clara e de conhecimento de todos (empresários, trabalhadores, juristas), trazendo segurança jurídica aos casos de responsabilidade nas terceirizações lícitas e ilícitas.
O que o empresariado quer é aumentar seu lucro, mas não existe conta mágica, ou eles aumentam esse lucro com uma gestão melhor, com um produto melhor, ou tiram mais ainda do trabalhador. O que estão tentando fazer é tirar da conta do trabalhador. Qualquer aumento de segurança jurídica para a empresa significa uma redução de segurança jurídica para o lado mais fraco, que é o empregado.
Folha - De acordo com o empresariado, não há uma especificação que diferencie objetivamente atividade-meio de atividade-fim. Para eles, além de criar incerteza, a dúvida abre espaço para corrupção no processo de fiscalização. A consequência dessa falta de clareza seria que empresas que terceirizaram determinadas atividades passaram a ser alvo de processos e a receber decisões desfavoráveis na Justiça. Para a senhora essas atividades estão bem diferenciadas na legislação? As empresas têm sido injustiçadas pela lei atual?
A jurisprudência e a doutrina já construíram há anos definição clara sobre tal distinção. Atividade-fim é aquela que coincide com o objetivo social da empresa definido em seu estatuto. O restante das atividades realizadas na empresa é considerado como atividade-meio. Invoco novamente o teor da Súmula 331 do TST. Não há "injustiças" praticadas contra as empresas por parte dos Poderes Executivo ou Judiciário. Os empresários que seguem esta regra singela –e não são poucos– não têm nenhum tipo de problema nessa seara.
Folha - A senhora acredita que caso o PL 4330 seja aprovado haverá uma queda no desemprego?
Não tenho dúvidas de que a aprovação do PL 4330 aumentará o índice de desemprego, pois os empregados terceirizados terão de aumentar sua carga de trabalho para receber um salário significativo, o que reduzirá o número de vagas no mercado de trabalho. E os empregos oferecidos terão condições precárias. O empregado continuará [e serão exigidas] as mesmas obrigações; em contrapartida, seus direitos serão reduzidos.
Folha - Qual o problema mais grave em relação a essa lei e que não está sendo discutido?
Acho que o fato de que essa lei pode aprofundar um processo de despersonalização que cria carcaças de empresas, empresas que são meras fachadas, mas que não respondem por nada porque até sua essência já foi terceirizada.
O que significa ter uma empresa se a marca é apenas uma controladora de outras empresas terceirizadas? De que modo isso pode ser benéfico para o trabalhador, para o consumidor, para a sociedade, não ter um referencial claro de quem é responsável pelas coisas? Isso claramente interessa apenas aos empresários.
Fonte: Folha de São Paulo, por Juliana Cunha, 20.04.2015
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