segunda-feira, 2 de março de 2015

Norma coletiva que suprime ou limita horas de percurso tem ou não tem validade?

Horas in itinere (ou de trajeto) é expressão que designa aquele tempo gasto pelo trabalhador no percurso de casa para o trabalho, ida e volta, quando não há transporte público regular até o local de trabalho e a empresa fornece a condução. Se esse tempo leva à extrapolação da jornada contratual ou do limite legal de trabalho, ele deve ser pago como horas extras, sendo considerado tempo à disposição do empregador, embora não haja trabalho efetivo no período. A partir da publicação da Lei 10.243, em 19.06.2001 (que acresceu o parágrafo segundo ao artigo 58 da CLT), esse direito, antes consagrado apenas na jurisprudência (Súmula 90 do TST), passou a ser previsto na CLT.

Frequentemente, as categorias representativas do empregado e do empregador, por meio de acordo ou convenção coletivos, transacionam sobre o direito às horas in itinere. Existem normas coletivas que tratam especificamente desse direito, mas o mais comum é que essa regulação venha no bojo de alguma cláusula do acordo ou da CCT que disciplina outras esferas da relação de emprego. Algumas vezes, essas normas estabelecem limites para o pagamento das horas de percurso, fixados, por exemplo, com base na média do tempo gasto nos trechos percorridos pelo trabalhador. Outras vezes, o instrumento coletivo suprime o direito do trabalhador ao pagamento das horas de trajeto, concedendo ou não outras vantagens ao empregado como forma de compensá-lo. Nessas situações é que surge a pergunta: é válida a norma coletiva que limita ou suprime o direito do trabalhador às horas in itinere?

As Turmas do TRT mineiro têm entendimentos divergentes sobre a matéria. Confira:

Fixar média sim, suprimir não. 

A 2ª Turma do TRT-MG, por exemplo, em julgamento de recurso em que se discutiu a matéria, decidiu que a norma coletiva que suprimia o direito às horas itinerantes não poderia prevalecer, considerando válida apenas a norma que limita o direito, com a fixação de um tempo médio de percurso. Assim, por maioria de votos, reconheceu o direito de um trabalhador ao pagamento das horas in itinere, em relação ao período abrangido pelo ACT que excluiu o direito, modificando a sentença, no aspecto.

A juíza convocada Sabrina de Faria Fróes Leão, autora do voto que embasou a decisão, constatou que, no caso, existia norma em Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) estabelecendo que a empresa fornecesse transporte gratuito para os seus empregados e que o tempo gasto no trajeto, do ponto de embarque ao local de trabalho, não seria considerado como à disposição da empresa.

Mas, de acordo com o entendimento da Turma, a norma coletiva não possui validade porque não pode suprimir direito assegurado em lei, especificamente no artigo 58, parágrafo segundo, da CLT e, ainda por cima, ligado à saúde do trabalhador. "Assim sendo e considerando que o ordenamento jurídico não admite a supressão, pura e simples, de direito previsto em lei, a ausência de remuneração pelo período de trajeto não pode ser objeto de negociação coletiva a partir da publicação da Lei 10.243/01", destacou a relatora. Ela ponderou que os instrumentos coletivos encontram limite no princípio da reserva legal (artigo 5º, inciso II, Constituição da República). Citou decisão do TST, no mesmo sentido da sua tese (TST-AIRR-18340-77.2009.5.18.0251, Ministro Relator Maurício Godinho Delgado).

Verificando, no caso, o preenchimento dos requisitos para o direito às horas itinerantes (concessão de transporte gratuito pela empresa e local de difícil acesso, não servido por transporte público regular), a Turma deferiu ao trabalhador o pagamento das horas in itinere, no período abrangido pelo acordo coletivo.

Entretanto, a relatora observou que, a partir de determinado período, os ACTs não mais suprimiram o direito às horas itinerantes, mas apenas fixaram o tempo médio gasto nos trechos, o que, segundo os julgadores, não contraria qualquer regra de direito e está compreendido nas prerrogativas dos sindicatos (inciso III artigo 8º da Constituição Federal).

"O parágrafo 2° artigo 58 CLT determina as situações em que o tempo despendido no transporte é computado na jornada de trabalho. Essas situações podem ser objeto de negociação coletiva, desde que o direito não seja totalmente suprimido, nos termos dos artigos 619 e 620 CLT e inciso XXVI artigo 7º da Constituição Federal, que não contempla exceções. Nem existe violação de norma de ordem pública, porque o direito seria irrenunciável pelo trabalhador. No caso, foi apenas estabelecida a duração média do tempo de transporte, para facilitar o cumprimento dessa obrigação, pela empregadora, além de definir, de forma coletiva, o direito dos empregados", explicou a relatora.

Portanto, citando o princípio do conglobamento, de acordo com o qual não pode uma das partes, obrigada pelos termos do acordo ou convenção coletiva, concordar com as cláusulas que lhe são benéficas e rejeitar aquela que a prejudica, a Turma entendeu que a média do tempo despendido no transporte prevista nos ACTs deverá ser observada, pela regra do inciso XXVI artigo 7º da Constituição Federal. Assim, foi indeferido o pedido das horas in itinere, em relação ao período de vigência destes instrumentos coletivos. (0010127-27.2013.5.03.0165)

Direito disponível, negociação válida. 

Situação parecida foi analisada pela 9ª Turma do TRT-MG, mas o entendimento adotado pelos julgadores foi diferente. No caso, a Turma manteve o indeferimento do pedido do trabalhador quanto ao recebimento das horas in itinere, por entender que a norma coletiva que suprimiu o direito é plenamente válida.

O desembargador João Bosco Pinto Lara, relator do recurso do trabalhador, verificou que a matéria foi objeto de negociação coletiva, que estabeleceu o fornecimento do transporte pela empresa sem que se computasse na jornada o tempo gasto no trajeto. E, no entendimento da Turma, deve prevalecer o que foi expressamente acordado entre as categorias representativas das partes.

Para o relator, a negociação coletiva que resolve situação específica para as categorias interessadas é eficaz e compõe, com base constitucional, o interesse conflitante. "Constitui-se em ato jurídico perfeito, com eficácia reconhecida pela Constituição Federal (art. 7º, inciso XXVI). Cabe aos sindicatos "a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria" (CF, artigo 8°, inciso III), sendo que os convênios pactuados coletivamente, de supremacia inquestionável, constituem convergência de vontades, visando a otimização das condições de trabalho ofertadas pela categoria profissional que os subscreve, com concessões (reciprocidade no despojamento bilateral), onde ambas as partes renunciam a certas vantagens em detrimento daquelas que entendem mais benéficas. Restabelece-se, assim, o equilíbrio juridicamente almejado", ressaltou.

Ainda segundo o desembargador, a negociação coletiva supera o individualismo para favorecer a ótica do interesse coletivo, ou seja, da maioria: "A norma coletiva se baseia na realidade da categoria profissional, nascendo de concessões recíprocas, não cabendo ao julgador destacar quais são essas vantagens. O ajuste feito mediante acordo ou convenção coletiva possui força vinculante, e como tal obriga às partes convenentes".

Entendendo que se trata de direito disponível e, portanto, negociável, a Turma considerou válidos os acordos coletivos, concluindo, por unanimidade, serem indevidas as horas in itinere pretendidas pelo trabalhador. (0010289-41.2013.5.03.0094) 

Confira o entendimento de outras Turmas do TRT mineiro sobre a matéria: 

PELO SIM

PELO NÃO

HORAS IN ITINERE. NEGOCIAÇÃO COLETIVA. A Constituição da República reconhece os instrumentos coletivos como mecanismos disciplinadores das relações de trabalho, acolhendo a flexibilização das normas que regem o contrato de trabalho, conforme previsão contida em seu art. 7º, inciso XXVI. Se os sindicatos representantes das categorias econômica e profissional ajustaram determinadas normas - porque as entenderam benéficas para o conjunto dos seus filiados, não podendo estes, individualmente, se opor a avença firmada em nome de toda a categoria, sem com isso desequilibrar a relação contratual e quebrar o princípio do conglobamento que informa as negociações coletivas. Não se pode considerar o instrumento coletivo cláusula por cláusula, mas em seu conjunto, observando-se os benefícios que foram assegurados, em detrimento de algumas concessões. Se assim não fosse, o empregado teria as benesses e se insurgiria contra as normas que julga prejudiciais. Dois pesos e duas medidas. Na espécie, o regramento relativo às horas in itinere não contraria norma de higiene, saúde e segurança do trabalho. (TRT 3ª R Sexta Turma 0010770-04.2013.5.03.0094 RO - Relator Desembargador Jorge Berg de Mendonça) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - POSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Aos sindicatos e às empresas foi assegurado o poder de conformação da ordem jurídica por meio da negociação coletiva (art. 7º, XXVI, da Constituição da República), que constitui, inclusive, a forma preferencial de solução de conflitos coletivos (art. 114, §§ 1º e 2º, da Constituição da República). Neste contexto, é válida a cláusula de instrumento normativo que dispõe sobre o pagamento ou não de horasin itinere. Os instrumentos coletivos devem ser interpretados considerando o conjunto das condições ajustadas (teoria do conglobamento), tendo em vista as concessões mútuas, visando a atender interesses do empregador e da categoria profissional. ( 01800-2013-052-03-00-3 RO / 16/10/2014 - Turma Recursal de Juiz de Fora - Relator Convocado Manoel Barbosa da Silva) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE. ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. VALIDADE. Legítima a disposição coletiva que fixa o tempo despendido pelo empregado no percurso até o local de trabalho, para fins de pagamento das horas in itinere. As cláusulas normativas refletem a vontade das partes acordantes e devem ser observadas, sob pena de ofensa ao art. 7º, XXVI, da CR/88. (00052-2014-148-03-00-1 RO / 15/10/2014 - Nona Turma - Relator Desembargador Ricardo Antonio Mohallem) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - LIMITAÇÃO POR NORMA COLETIVA - VALIDADE. O entendimento majoritáio do c. TST no sentido de que deve ser considerada lícita a norma coletiva que fixa o tempo a ser pago em virtude do tempo despendido pelo empregado com as horas in itinere pois o estabelecido decorre de concessões mútuas firmadas no âmbito da referida negociação, o que não ofende o disposto no art. 58, §2º, da CLT (00249-2014-070-03-00-3 RO - 14/10/2014 - Oitava Turma - Relator Convocado Paulo Maurício R. Pires) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO DE PAGAMENTO. INVALIDADE DA CLÁUSULA NORMATIVA. É inválida a cláusula normativa que suprime o pagamento das horas in itinere. Exegese dos artigos 1º, 58 §2º e 3º e artigo 9º da CLT, combinados com o caput do artigo 7º e incisos VI, XIII, XVI e XXVI, da C.R./88. Precedentes da SDI-1 do TST. (00776-2013-102-03-00-7 RO / 14/10/2014 - OITAVA TURMA - Relator Desembargador Sércio da Silva Peçanha) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - NEGOCIAÇÃO COLETIVA - LIMITES. O reconhecimento dos instrumentos coletivos encontra limite no princípio da reserva legal (art. 5º, inciso II, da CF/88), o que enseja a nulidade de cláusulas normativas que consagram a supressão de direitos previstos em lei. Ainda que a Magna Carta reconheça os acordos e convenções coletivas de trabalho em seu artigo 7º, inciso XXVI, a autonomia dada às partes não permite negociação acerca das horas in itinere, pois devem ser preservadas as garantias mínimas asseguradas aos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, caput, CR/88). Com efeito, havendo expressa previsão legal quanto às horas in itinere (artigo 58, parágrafos 1º e 2º, da CLT), a cláusula elaborada em sede de negociação coletiva dispondo em sentido diverso, com a supressão do direito, não tem validade. Entretanto, a d. maioria entendeu que, mesmo havendo supressão das horas in itinere, deve-se prestigiar a negociação coletiva, vencido o relator no aspecto. (00084-2014-157-03-00-8 RO - 13/10/2014 - Quarta Turma - Julio B. do Carmo ) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE - SUPRESSÃO - NEGOCIAÇÃO COLETIVA - Não encontram amparo legal as normas coletivas que suprimem o direito do trabalhador ao reconhecimento das horas itinerantes como tempo à disposição do empregador. Inválidas, portanto, ainda que sob a justificativa que outros direitos trabalhistas foram estabelecidos em favor dos trabalhadores. (00116-2012-086-03-00-0 RO - 13/10/2014 - Quinta Turma - Relatora Convocada Ana Maria Amorim Rebouças) 

EMENTA: HORAS IN ITINERE. NEGOCIAÇÃO COLETIVA. LIMITES. A constituição reconhece as convenções e acordos coletivos como legítimas fontes do direito do trabalho (artigo 7º, inciso XXVI). Não há dúvida de que também assegurou, mediante o artigo 8°, ampla liberdade sindical, com inegável fortalecimento das entidades representativas das categorias profissional e econômica. No entanto, esses dispositivos devem ser interpretados sistematicamente com os demais direitos e garantias fundamentais assecuratórios da dignidade do trabalhador. A transação dos direitos trabalhistas, por meio da negociação coletiva, não é irrestrita, encontrando óbice intransponível quando confronta com norma de ordem pública, cogente, imperativa, como é o caso das horas in itinere, nos termos do artigo 58, § 2º, da CLT. Esse instituto não se relaciona apenas à duração do trabalho, configurando igualmente medida de proteção à saúde e à segurança do trabalhador (artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal), que são direitos timbrados por indisponibilidade absoluta, não comportando supressões, seja na esfera individual, seja no âmbito coletivo. Portanto, as cláusulas normativas que eliminam, parcial ou totalmente, a remuneração correspondente às horas de percurso devem ser consideradas nulas, por restringirem direito indisponível do empregado. (00048-2013-156-03-00-7 RO - 10/10/2014 - Primeira Turma - Luiz Otavio Linhares Renault ) 


Fonte: Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região Minas Gerais, 02.03.2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário