O chefe deu instruções para sua equipe. No meio da tarefa, alguém comete um erro e todo o trabalho vai por água abaixo. Como resultado, o gestor perde completamente a paciência e repreende os funcionários aos gritos. Assédio moral, certo? Não necessariamente. Embora a expressão seja popular, ela não serve para designar qualquer comportamento rude.
Só quando uma pessoa sofre humilhações frequentes no ambiente de trabalho, em um período prolongado de tempo, pode-se dizer que houve assédio moral. A bronca do chefe do ano passado não vale. Achar que o “chefe me persegue” ou “pega no meu pé” são elementos comuns que fazem muita gente usar o termo, sem aplicá-lo com clareza.
“Como poucas pessoas entendem o que de fato é o assédio moral e quais são seus limites, o termo acabou passando por uma banalização”, diz o advogado Renato Almeida dos Santos, sócio da S2 Consultoria, especializada em prevenir e tratar atos de fraude e assédio.
O oposto também é verdade: há profissionais que foram vítimas do assédio e nem se dão conta. “Geralmente, a vítima do assédio moral não sabe que está passando por aquilo — leva muito tempo para perceber que está sendo assediada”, explica o advogado Rodrigo Wasem Galia. Autor de “Assédio Moral no Trabalho” e coordenador do curso de pós-graduação em direito do trabalho da escola de ensino à distância Verbo Jurídico, ele diz que a confusão é comum. Afinal, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não existe uma definição para o assédio moral. Com base em decisões prévias da Justiça, no entanto, é possível qualificar o que é e o que não é o assédio.
Como identificar?
O assédio moral é caracterizado pela repetição de um comportamento abusivo, que pode ser uma violência física ou psicológica. Para ficar mais claro: digamos que o chefe mencionado no início da reportagem grite com seus funcionários, na intenção de humilhá-los, todos os dias durante seis meses. A Justiça poderia entender a conduta como assédio moral. “O conceito do assédio é você subjugar uma pessoa, humilhá-la, a ponto de ela, muitas vezes, perder sua própria vontade e identidade. Isso não acontece em um só xingamento. É um processo contínuo”, diz Renato Almeida.
Outra característica é a perseguição. Esse fator é claramente verificado quando uma situação envolve dois funcionários e um deles sofre uma punição claramente mais severa pela mesma falta. Digamos que uma discussão profissional termina em briga no local de trabalho, mas um dos envolvidos recebe uma suspensão, enquanto o outro leva apenas uma bronca.
O assédio pode acontecer não só por meio de ações, como pela falta delas. É o caso quando o chefe deixa somente um funcionário “na geladeira”, diz Almeida. Isto é, quando o empregador, sem motivo ou negociação prévia, reduz consideravelmente o volume de trabalho de um funcionário. “Não dar trabalho para a pessoa, ou fazer reunião com toda a equipe e não chamá-la pode ser um elemento para confirmar o assédio”, diz o advogado.
Mais comum, entretanto, é o gestor dar metas impossíveis de serem alcançadas para o subordinado. Ao tentar dar conta das tarefas, o funcionário se sente pressionado diariamente, ameaçado de demissão. “Fixar metas que você sabe que o funcionário não vai dar conta, inatingíveis, é uma situação comum”, diz Aparecido Inácio, autor de “Assédio moral no mundo do trabalho” e sócio do escritório Aparecido Inácio e Pereira. Novamente, tal prática tem de ser contínua para configurar o assédio moral.
O conjunto dessas práticas pode causar uma série de danos ao trabalhador. Segundo Inácio, o primeiro reflexo negativo é no ambiente de trabalho. “A pessoa passa a ter medo do local de trabalho, medo do chefe, não se relaciona mais com os colegas”, diz. Se o processo é contínuo, o quadro evolui. “As agressões, que em princípio são de natureza psicológica podem se tornar um problema de natureza física”, alerta o autor. “A pessoa passa a ter problemas de saúde.”
Rodrigo Wasem Galia pontua que “o assédio moral atinge a esfera imaterial” da pessoa. “Para caracterizar o assédio moral, temos de ter danos à personalidade do trabalhador ou aos seus direitos fundamentais”, afirma.
O que NÃO é
Se o gestor perde a paciência com sua equipe, dá uns gritos e fim da história — isto é, ele não faz disso um hábito, foi um episódio que se deu uma ou duas vezes no ano —, não se trata de assédio. Mesmo que ele grite e xingue os funcionários, não é assédio se é um fato pontual. O que está longe de significar que seja um comportamento aceitável pelos padrões de gestão, é bom lembrar. Se ele xingou os funcionários, pode ser crime de calúnia, difamação ou injúria. Em outras palavras, o gestor (e a empresa) poderão responder pelos palavrões, mas a situação não recebe a denominação “assédio moral”.
Para ficar ainda mais claro: se o chefe chega para alguém da equipe e chama o profissional de “ladrão”, seria calúnia. Se ele grita “Você é um lixo!”, poderia ser injúria. “Tudo isso é crime, mas não é assédio”, ressalta Renato Almeida. “O assédio é feito de várias ações. Precisa necessariamente agregar um conjunto de comportamentos.”
Você simplesmente uma levou bronca do chefe porque não cumpriu um prazo? “Não, não é assédio moral — o nome disso é gestão”, diz Almeida. “Colocar prazo, cobrar e dar bronca está dentro dos limites. O que temos visto muito nas empresas é um medo do gerente de fazer gestão por não querer ser processado por assédio moral.” E não tem porquê. No ambiente de trabalho, é comum que o chefe seja rigoroso. Afinal, é uma relação hierárquica — o empregador vai dar instruções e chamar a atenção de um funcionário que não siga as orientações. Até aí, tudo bem. Só não é permito extrapolar. “Uma coisa é você ser líder e dar ordens, outra é o tratamento abusivo que quebra essa relação”, diz Aparecido Inácio.
O que fazer?
Se você tem sido vítima de assédio moral, o primeiro passo é descobrir se há um departamento em sua empresa que pode ajudá-lo a resolver o problema. Algumas companhias contam com uma ouvidoria ou até linha direta para denúncias. Mas também pode ser o RH.
Depois de ter feito a reclamação, se nada mudou na empresa, as medidas terão de ser mais extremas. Você poderá levar o empregador para a Justiça. Não tem certeza que se trata de assédio moral? Converse com o sindicato da sua categoria ou com um advogado especializado para saber qual a maneira mais correta de lutar pelos seus direitos.
Agora, atenção: ao fazer a reclamação, você terá de provar que sofreu aquele tipo de agressão. Isso significa reunir o maior número de provas possível — como trocas de e-mail e mensagens —, além de, se possível, conseguir testemunhas, que podem ser os seus colegas de trabalho. “Digamos que o chefe está humilhando uma certa pessoa no grupo do WhatsApp. As conversas servem como prova”, diz Almeida.
De quem é a culpa
O assédio não existe só por parte do chefe em relação ao funcionário. É o caso mais óbvio — o chamado modo “vertical descendente”, que vem de cima para baixo. Só que o contrário também é possível: “vertical ascendente”, quando o subordinado assedia o gestor. O caso mais típico é quando o funcionário tenta “puxar o tapete” do chefe, na tentativa de ficar com seu cargo, dizem os advogados. Existe ainda a forma “horizontal” do assédio, quando as agressões vêm de outro colega (ou outros colegas) em nível hierárquico semelhante. Independentemente da forma com que se deu o assédio, a empresa tem responsabilidade na solução do problema.
É tarefa fundamental do empregador prezar por um ambiente de trabalho seguro. Isso significa que a companhia terá de pagar as possíveis indenizações, caso o funcionário vença a ação de assédio moral na Justiça. Por quê? A companhia deveria ter feito de tudo para prevenir tal atitude. O assediador, como pessoa física, também pode ser obrigado a pagar indenização, dependendo do processo. “A empresa é responsável pelo meio ambiente de trabalho. Os gestores são contratados para administrar, não para praticar assédio. Ao praticá-lo, estão cometendo uma agressão, um ato ilícito, uma violência. E essa violência gera uma obrigação de indenizar”, diz Aparecido Inácio.
De acordo com os especialistas, parte dos assédios acontece por falta de informação dentro da empresa. Renato Almeida defende que é possível treinar os gestores para não cometerem assédio. “É uma questão de cultura. O assédio costuma acontecer em um ambiente que favorece esse tipo de atitude.” O advogado diz que, em boa parte das ocasiões, não é um caso isolado. O gestor que hoje assedia, já foi assediado por alguém. “É uma bola de neve”, afirma. “No final do dia, o assediador é um grande inseguro. Ele quer subjugar outra pessoa para poder se sobressair.”
Fonte: Época Negócios, por Edson Caldas, 29.03.2017
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