quinta-feira, 6 de abril de 2017

A terceirização cria bons empregos?

Num país como o Brasil, com 13 milhões de desempregados, o debate sobre uma reforma trabalhista que facilite a criação de novos postos de trabalho é urgente. Tal debate irrompeu repentinamente na semana passada, quando a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n° 4.302, que dormia nas gavetas do Parlamento desde 1998 – quando Fernando Henrique Cardoso era presidente da República e Michel Temer presidente da Câmara. O projeto regulamenta algo que já é realidade no Brasil: a terceirização. Além de criar mais segurança jurídica para empregados e empregadores, a nova lei elimina uma distinção que só existia no Brasil, entre atividades-meio e atividades-fim. Hoje, uma escola, por exemplo, pode tercei- rizar mão de obra apenas em serviços como limpeza e segurança. Se a nova lei for sancionada pelo presidente, tal escola poderá também contratar empresas terceirizadas com professores. Isso não significa o fim da Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT criada nos anos 1950 pelo presidente Getúlio Vargas. Os trabalhadores terão os mesmos direitos, como férias e 13º salário – só que o responsável pelo pagamento de tais direitos passa a ser a empresa terceirizada (leia Nossa Opinião sobre o assunto na página 26).
Pode-se dizer que o teto de gastos era uma ferramenta que sempre esteve no cardápio dos partidos e governos brasileiros – tanto que a ideia de limitar as despesas surgiu pela primeira vez na equipe econômica do primeiro governo Lula. A reforma da Previdência, igualmente, é um ponto da agenda brasileira há muito tempo. Fernando Henrique tentou passar a idade mínima em seu governo e perdeu por um voto (leia a entrevista do ex-presidente a partir da página 58). Em entrevista em janeiro de 2016, Dilma Rousseff propôs uma reforma da Previdência praticamente idêntica à que seu ex-vice, o atual presidente, Michel Temer, submeteu aos representantes do povo brasileiro no Congresso. Se petistas, tucanos e peemedebistas concordam em tese com o teto de gastos e com a reforma da Previdência (embora frequentemente finjam que não, como costuma ocorrer no teatro da política), questões relativas à reforma trabalhista – como a terceirização – dividem os partidos. Tanto que a proposta do governo Fernando Henrique acabou indo para a gaveta durante todo o governo Lula.
Entre as críticas à proposta do governo Fernando Henrique está a possibilidade teórica de uma empresa substituir empregados contratados de acordo com a CLT por empregados terceirizados. Um outro projeto, em tramitação no Senado e aprovado pela Câmara em 2015, quando ela era presidida pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB), trazia uma salvaguarda contra essa possibilidade. Um empregado demitido de uma empresa só poderia ser contratado em regime terceirizado 12 meses depois da demissão. O deputado Alessandro Molon (Rede) acha que o novo projeto pode aumentar o número de fraudes trabalhistas. Ele fez parte da oposição ao PL 4.302 no plenário, que protestou usando os famosos patos infláveis da Fiesp (acima) num novo contexto. O fato de existir um projeto mais recente sobre terceirização causou um certo mal-estar entre os senadores. “Sobre o processo, acho absurdo que um assunto dessa importância seja votado de repente. Vem alguém e diz: ‘Mas está lá há 20 anos’. Sim, escondido e guardado”, diz o senador Cristóvam Buarque (PPS-DF). “Por exemplo, terceirização de professores. Eu nem quero rejeitar. Prefiro um professor terceirizado do que aluno sem aula, mas não houve análise detalhada de como será isso.” O presidente do Senado, Eunício Oliveira, do PMDB (leia mais sobre ele a partir da página 48), decidiu colocar em pauta o projeto de 2015. “Os projetos podem ser complementares. Se tiver alguma desa-tualização no da Câmara, obviamente o projeto do Senado pode preencher uma possível lacuna”, diz Eunício.
Um ponto sobre o qual quase ninguém discorda é que a regulamentação da terceirização, seja por meio do projeto de 1998, seja pelo de 2015, deve gerar novos empregos. Existem divergências entre os senadores, no entanto, sobre como seriam esses empregos. Para o senador João Capiberibe (PSB), seriam empregos piores e com salários mais baixos. O senador Armando Monteiro (PTB), que foi ministro do Desenvolvimento no governo Dilma Rousseff, acha que o efeito da nova lei, se sancionada, será benéfico para todos, empregadores e empregados. Enquanto Temer não sacramentar a lei e o projeto de 2015 estiver em pauta no Senado, a discussão continuará ocorrendo – e, ao longo dos meses, deve se somar ao debate necessário sobre a reforma trabalhista, que é uma das prioridades do país.
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SIM
Para o senador Armando Monteiro (PTB-PE), a terceirização é uma saída diante do desemprego e do mercado informal
ÉPOCA – Qual foi a principal motivação para ressuscitar a discussão do PL 4.302?
Armando Monteiro – É fundamental destacar que existem cerca de 13 milhões de trabalhadores terceirizados e milhares de empresas que atuam como prestadores de serviços. A terceirização é uma realidade no Brasil e no mundo. Não é esse projeto ou o outro que tramita no Senado que está criando a terceirização, mas ao contrário, essa é uma resposta do Legislativo a uma enorme insegurança jurídica que hoje se apresenta em desfavor, não somente dos prestadores de serviços e empresas contratantes, mas sobretudo da massa de trabalhadores que se ocupam dessa atividade.
ÉPOCA – Qual o impacto da liberação irrestrita da terceirização na sociedade?
Monteiro – Um bom exemplo foi dado em artigo publicado há um tempo pelos economistas João Pinho de Melo, Vinicius Carrasco, Tiago Cavalcanti e Sérgio Firpo. Veja só: a Vale é proprietária de supercargueiros usados no transporte transatlântico de minério. Mas até há alguns anos ela não os possuía. Então, qual é a atividade-fim da Vale? Ela é uma empresa produtora de minério, mas é também uma empresa de logística. O professor José Pastore lembra um ponto importante. As empresas modernas fazem parte de cadeias produtivas em que predomina grande divisão do trabalho que otimiza tempo e especialização. Assim é no mundo inteiro. A Toyota do Japão, por exemplo, trabalha com 500 fornecedores que, por sua vez, se associam a 2 mil empresas terceirizadas. No conjunto, a cadeia de empresas produz um veículo que é campeão mundial de vendas, com preço atraente e qualidade convincente. Como resultado, os investimentos crescem e os empregos se multiplicam. Se as atividades-fins não forem terceirizadas, além de impormos uma restrição às decisões do setor produtivo, estaremos perpetuando a insegurança jurídica.
ÉPOCA – Quais as principais diferenças entre o projeto aprovado e o que está no Senado?
Monteiro – O PLC 30/2015 me parece um marco legal mais equilibrado, porque oferece maiores garantias aos trabalhadores. Destaco o seguro de 4% nos contratos para cobrir despesas, eventuais interrupções de pagamento dos direitos trabalhistas, o dever de fiscalizar mensalmente a empresa contratada, que também terá de apresentar comprovação de aptidão técnica para o desempenho da atividade e equipamentos adequados. Com isso, está se garantindo que o trabalhador terceirizado tenha melhores condições de segurança, reduzindo, assim, os riscos laborais.
ÉPOCA – Há risco de “pejotização” e perda de direitos, como diz a oposição?
Monteiro – Creio que a possibilidade de admitir empresa individual como contratada e a regulamentação da terceirização são uma oportunidade para milhões de trabalhadores que hoje estão desempregados ou no mercado informal. No PLC 30/2015, as exigências para a empresa ser contratada são maiores, o que de certa forma restringe a pejotização e fornece maiores garantias para o trabalhador e para a manutenção das receitas previdenciárias.
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NÃO
Para o senador joão Capiberibe (PSB-AP), a proposta aprovada deixa o trabalhador vulnerável
ÉPOCA – Qual foi a principal motivação para ressuscitar a discussão do PL 4.302?
João Capiberibe – Naquela época, havia um pensamento econômico neoliberal, que defendia a ideia do mercado regulando a vida da sociedade. Mas não conseguiram passar. Quase 20 anos depois, a Câmara impõe essa concepção de que o mercado regula a vida de todos e não é preciso nem Estado, nem lei. Isso foi um golpe da Câmara. Depois que o Congresso tomou medidas autoritárias para cassar a presidente Dilma Rousseff, ele se acostumou a dar golpes. É um oportunismo que desrespeita a sociedade e o Senado.
ÉPOCA – Oual o impacto da liberação irrestrita da terceirização na sociedade?
Capiberibe – Um setor que vai sofrer conseqüências drásticas é o público. O Brasil não conseguiu profissionalizar sua burocracia estatal. Com a terceirização geral e irrestrita, desaparece a possibilidade de construir uma carreira no Estado, salvo aquelas que existem em órgãos como a Receita Federal ou no Judiciário, por exemplo. Os governantes eleitos certamente vão passar a contratar terceirizados em vez de abrir concursos públicos. A partir daí, cada vez que mudar, por exemplo, um prefeito, mudará até o porteiro da prefeitura. Sai todo mundo para entrar a equipe nova. Isso vale para os governadores e para o presidente também. As empresas que prestam serviços para o governo podem deixar de recolher os encargos sociais dos trabalhadores e também atrasar os salários. Por exemplo, quando termina o mandato, as empresas que prestaram serviços normalmente são dispensadas e, muitas vezes, os governantes que entram não pagam os salários atrasados e as dívidas com a empresa, que consequentemente não paga os trabalhadores. Isso é comum e tende a piorar.
ÉPOCA – Quais as principais diferenças entre o projeto aprovado e o que está no Senado?
Capiberibe – Em relação à proteção ao trabalhador, o PCL 30/2015 tem propostas melhores. Ele atenuaria o radicalismo do projeto aprovado pela Câmara, que agiu com muita má-fé. Haverá uma resposta do Senado em relação a essa atitude golpista. Estamos dispostos a discutir o PCL 30/2015. Acho que temos condições de levar esse debate para a sociedade.
ÉPOCA – Há risco de “pejotização” e perda de direitos, como diz a oposição?
Capiberibe – Sim, porque a proposta vulnera-biliza a situação do trabalhador. Ele tem uma relação de dependência com o empregador e é protegido por algumas leis. Essas leis correm o risco de desaparecer. Além disso, em um período com uma oferta de mão de obra gigantesca como estamos agora, os salários serão aviltados. As empresas dispensarão os trabalhadores antigos para contratar novos já pela nova legislação. Ou seja, da maneira que foi aprovada, a terceirização foi um golpe contra a CLT. Ela se desmanchou, se acabou. E muito comum ainda ver uma proteção às empresas que praticam abertamente o trabalho escravo: o governo esconde a lista suja, não permite sua divulgação e contraria acordos internacionais para proteger esse tipo de relação trabalhista escravagista.

Fonte: Revista Época, por Paula Soprana e Nelson Niero Neto, 27.03.2017

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