terça-feira, 2 de maio de 2017

Combate ao trabalho escravo: exigência civilizatória.

Foi deferida, pelo Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, do Tribunal Superior do Trabalho, liminar requerida pelo Ministério Público do Trabalho em mandado de segurança referente ao cadastro de empregadores que utilizam trabalho escravo – a chamada “lista suja do trabalho escravo”. Trata-se originariamente de uma ação civil pública ajuizada pelo MPT em face da União, com a finalidade de que o Ministério do Trabalho seja compelido a publicar a lista dos empregadores responsabilizados com a prática de trabalho escravo.
Em decisão fundamentada em fontes do direito interno e internacional, além da observância de princípios constitucionais, o Juiz da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, Rubens Curado Silveira, deferiu a liminar postulada na ACP, para o fim de obrigar o Ministério do Trabalho a publicar a lista prevista na Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 2016. A União requereu, inicialmente, a cassação da liminar mediante a apresentação de pedido de suspensão de segurança. O Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, Pedro Luís Vicentin Foltran, negou o pleito e manteve, em sua integralidade, a liminar deferida em 1º grau (link PGT). A União, contudo, logrou obter, em decisão monocrática do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, a suspensão da liminar, sob argumento de suposto “ativismo judicial” por parte do Julgador de 1º grau. Com a decisão do Ministro Alberto Bresciani em sede de mandado de segurança, fica cassado o despacho do Presidente do TST. Em outras palavras: fica restabelecida a liminar concedida na ação civil pública e a União está obrigada a publicar o cadastro de empregadores que utilizaram trabalho escravo.
Para além da acidentada marcha processual do caso – gerada pela constante interposição de medidas pela União, que é, no fim das contas, a autora da Portaria cuja aplicação se pretende na ACP –, o que chama a atenção é o elemento civilizatório da demanda formulada pelo MPT. A persistência de práticas de escravidão no Brasil contemporâneo é um dos maiores desafios à noção de que vivemos sob um Estado Democrático de Direito e de que respeitamos os direitos fundamentais. Não é por acaso que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) precisou ser ativada, em duas oportunidades, para que o Brasil fosse compelido ao cumprimento dos direitos humanos em sua acepção mais elementar.
No caso “José Pereira”, em que o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade, a CIDH obteve o compromisso do Brasil de estabelecer uma ampla política pública de combate ao trabalho escravo. Disso decorreram várias iniciativas louváveis, como a criação da CONATRAE, a modificação do disposto no art. 149 do Código Penal (para ampliar o alcance da definição penal de redução de alguém a condição análoga à de escravo), a criação e funcionamento dos grupos móveis de fiscalização pelo Ministério do Trabalho e, por fim, o cadastro de empregadores (“lista suja”).
Mesmo com toda essa mobilização, que permitiu muitos avanços na luta contra a escravidão contemporânea, a prática persistiu. E, em dezembro de 2016, foi o Brasil condenado no caso “Fazenda Brasil Verde”, que remontava a um resgate ocorrido em 2000. Ficou ali decidido que o Brasil descumpriu uma série de dispositivos do direito internacional dos direitos humanos, além de não haver cumprido sua própria legislação em relação à proibição do trabalho escravo.
Essa segunda decisão da CIDH demonstra a enorme tarefa, que ora se apresenta ao Brasil, de fazer respeitar os direitos fundamentais e o postulado da dignidade da pessoa humana, combatendo toda forma de escravidão. Para isso, são necessários instrumentos dotados de eficácia. Um deles, e dos mais efetivos, é o cadastro de empregadores, iniciativa exitosa de tornar públicas condutas que não podem ser toleradas num Estado Democrático de Direito.
A escravidão contemporânea deve ser concebida, em linhas gerais, como a sujeição extrema de um homem ao poder incontrastável do seu semelhante, capaz de lhe anular a personalidade. Ela suprime direitos ligados à individualidade da pessoa, à racionalidade do indivíduo; viola princípios essenciais à sobrevivência e à preservação da condição humana; ofende, pois, direitos inerentes à existência do homem, à liberdade e à igualdade, que dão suporte à própria noção de dignidade.
As causas humanitárias são o ponto de partida e de chegada do enfrentamento à escravidão contemporânea: o bem-estar dos indivíduos é a razão de ser e o objetivo precípuo do combate obstinado ao trabalho escravo. No entanto, razões de ordem econômica também são importantes para a luta contra a escravidão, sobretudo o respeito à concorrência leal e, com efeito, a salvaguarda do equilíbrio financeiro dos empregadores que observam à risca a legislação ambiental e trabalhista.
Sob essa perspectiva estritamente econômica, a “lista suja do trabalho escravo” revela-se um instrumento de destacada utilidade ao capital produtivo e financeiro na imposição de um comportamento ético na competição produtiva e na disputa mercadológica. O cadastro, além de possuir a inegável relevância de tornar públicos os atos da Administração, serve de parâmetro para o desenvolvimento de políticas de responsabilidade social: é por meio dele que empresas restringem a celebração de relações comerciais com empregadores autuados por submeterem seus trabalhadores a situações de escravidão, provocando-lhe um isolamento comercial; é também por intermédio da lista que instituições financeiras limitam a concessão de crédito público e privado àqueles nela figuram.
Em nome da concorrência leal, é inegável que a concessão de créditos fiscais deve ser realizada de forma distinta para os empregadores que respeitam integralmente a legislação ambiental e trabalhista e os escravagistas que agridem o direito humano absoluto e inderrogável de não ser submetido à escravidão.
Uma reflexão final se faz necessária. Um dos desafios mais difíceis da tarefa de julgar é o de realizar um duplo reconhecimento: por um lado, o juiz deve reconstruir, da forma mais adequada possível, as teses, demandas e expectativas que as partes apresentam, com a finalidade de proferir uma decisão que esteja à altura da complexidade do caso e, com isso, cumprir sua função de dizer o direito numa situação de conflito. Sua tarefa, contudo, não se esgota aí. Há um segundo elemento igualmente importante: o julgador precisa estabelecer uma relação coerente entre o caso em discussão e o ordenamento jurídico, em especial os princípios constitucionais. As decisões proferidas na ACP referente à lista suja, de autoria dos magistrados Rubens Curado Silveira, Pedro Luís Vicentin Foltran e Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, devem ser lidas e analisadas por atores sociais, pesquisadores e profissionais do direito. Elas denotam uma aguçada compreensão do que está em jogo, seja sob a perspectiva dos direitos humanos, seja sob a ótica do devido processo legal. Quando, no futuro, for reconstruída a história dos tempos turbulentos em que vivemos, haverá um lugar especial para essas decisões. Elas representam um compromisso que não cessa jamais: o de afirmar a dimensão civilizatória dos direitos humanos.
(*) Cristiano Paixão – Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Membro Titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) na Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Tiago Muniz Albuquerque é Procurador do Trabalho. Coordenador Nacional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE) do Ministério Público do Trabalho. Doutorando em Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Fonte: JOTA, por Cristiano Paixão e Tiago Muniz Albuquerque (*), 15.03.2017

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