A crise econômica em que o país mergulhou colocou em choque duas visões de mundo. De um lado, a legislação protetiva do trabalhador, ancorada na CLT. De outro, a necessidade de modernização e atualização das relações entre capital e trabalho.
No meio deste tiroteio retórico, a magistratura trabalhista vem se posicionando em favor do empregado e contra o empregador. E não como mero contrapeso ao interesse e potência econômica do patronato, mas no afã de preservar os avanços da civilização e o estado democrático de direito.
É o que explica o novo presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da IV Região (Amatra IV), do Rio Grande do Sul, o juiz-substituto do trabalho Rodrigo Trindade de Souza. Eleito para o biênio 2016-2018, Trindade quer focar sua gestão nas pautas extracorporativas: todos aqueles projetos discutidos no Congresso Nacional que ameaçam derrubar as bases jurídicas até então erigidas em torno do Direito do Trabalho e que se constituem no porto seguro dos trabalhadores.
“Tramitam no Congresso 55 projetos que tratam sobre precarização do mundo do trabalho. Nós atuamos de forma muito intensa, em forma de memoriais e notas técnicas nestes projetos. É o nosso compromisso com o Direito do Trabalho, com o valor social do trabalho e com o estado democrático de direito”, afirma.
Recentemente, o presidente da Amatra gaúcha foi a público para contestar o deputado federal Nelson Marchezan Júnior (PSDB-RS), que pediu, da tribuna, o fechamento da Justiça do Trabalho. Além dos argumentos jurídicos, Trindade disse que, ao contrário do que pensa o parlamentar, a Justiça do Trabalho não causa prejuízos ao país. Dá um lucro contábil de mais de R$ 5 bilhões por ano, diz Trindade.
“Este superávit, entretanto, jamais deve ser visto como a finalidade da jurisdição. Todo país que se pretende civilizado tem no Poder Judiciário um órgão capaz de dirimir o conflito entre as pessoas. Não se pode colocar na conta matemática o cumprimento de obrigações sociais, principalmente envolvendo direitos fundamentais’’, avisa.
Nesta entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico, Trindade diz que não se envolve nesta luta contra a precarização de direitos por interesse corporativo. “Estamos atuando para resguardar o estado democrático de direito, para que se cumpram os preceitos constitucionais. E isso não é tarefa só nossa, dos julgadores, mas de todas as organizações que têm esta responsabilidade em seu escopo de atuação.”
Leia a entrevista:
ConJur – A sua chapa conseguiu uma votação muito expressiva, 97% dos votos, a segunda maior em 50 anos de história da entidade. E elegeu como presidente um juiz-substituto, o que deve ser um caso raro no Brasil. A magistratura trabalhista gaúcha está mudando?
Rodrigo Trindade de Souza — Isso mostra uma diferença no perfil da magistratura, formada, cada vez mais, por juízes jovens. Estes juízes-substitutos demonstram que querem participar ativamente da vida associativa, dos destinos da entidade que os abriga. E isso nos dá uma responsabilidade muito grande.
ConJur – Quais são as prioridades da gestão?
Rodrigo Trindade – Somos, ao mesmo tempo, sindicato, clube e entidade de promoção de cidadania. Em termos de infraestrutura, estamos concluindo a ampliação da nossa sede, em Porto Alegre. Será, provavelmente, a maior e mais completa sede de Amatra de todo o Brasil. Em abril de 2017, se não houver atraso no calendário, terei a honra de entregar a obra, que começou lá atrás, na gestão do juiz Daniel de Souza Nonohay. Além disso, estamos empenhados numa série de demandas corporativas, junto ao Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
ConJur – Existe alguma meta direcionada ao público externo à magistratura do trabalho?
Rodrigo Trindade – Estas são as mais importantes, claro, para o conjunto da sociedade. Aliás, todas as administrações gostam de ressaltar o compromisso de ampliar sua atuação e ter maior contato com a sociedade civil. Esta administração não é diferente. Visitamos universidades e sindicatos pelo menos uma vez na semana para falar sobre Direito do Trabalho e magistratura. Também prestamos auxílio informal a sindicatos, para negociação de acordos coletivos, para que cheguem a bom termo. Isso além participar de audiências públicas no Legislativo, de encontros e discussões em federações e sindicatos patronais e em outras instituições que patrocinam alguma discussão na seara trabalhista. Temos, é claro, o front legislativo, o Congresso Nacional, que vem merecendo enorme atenção, em razão da importância dos projetos que lá tramitam.
ConJur – Que projetos?
Rodrigo Trindade – Tramitam no Congresso 55 projetos que tratam sobre precarização do mundo do trabalho. Nós atuamos de forma muito intensa, em forma de memoriais e notas técnicas nesses projetos. É o nosso compromisso com o Direito do Trabalho, com o valor social do trabalho e com o estado democrático de direito. Além disso, no lado corporativo, estamos dando suporte a projetos que preveem a criação de novos cargos de juízes, de servidores e de varas da Justiça do Trabalho. São duas frentes.
ConJur – Quais são os projetos que mais preocupam?
Rodrigo Trindade – Especificamente no nosso campo, estamos preocupados com o projeto que amplia a hipóteses de terceirização do trabalho (PLC 30/2015), que está no Senado. A terceirização é bastante ruim para o mundo do trabalho. A Amatra fez um estudo, entregue recentemente à direção do TRT-4, sobre os maiores devedores da Justiça do Trabalho no estado. Descobrimos que, dos seis maiores devedores, quatro são empresas terceirizadas – inclusive a primeira.
ConJur – A aprovação desse texto, então, seria ruim.
Rodrigo Trindade – A perspectiva que se apresenta com a possível aprovação deste projeto de lei é de ampliação do rol de dívidas trabalhistas, prejudicando justamente os trabalhadores. Há mais. A terceirização implica salários 24% inferiores, na média, em relação aos contratos firmados diretamente com o tomador dos serviços. Apresenta o dobro de tempo de rotatividade, ou seja, quem presta serviços fica mais tempo desempregado. O terceirizado trabalha, em média, três horas a mais do que o empregado formalizado. E o pior: 80% dos acidentes de trabalho no Brasil envolvem terceirizados. O incrível é que os terceirizados representam só 17% da força de trabalho do Brasil. E o mais trágico: de cada cinco operários que morrem no trabalho, quatro são terceirizados. Então, esse projeto não pode avançar no Senado para não precarizar ainda mais as relações entre capital e trabalho.
ConJur – Algum outro?
Rodrigo Trindade – Um dos projetos que mais causa preocupação é o que propõe a redução da maioridade trabalhista, expresso na PEC 18/2011. Ele objetiva alterar o inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição e autorizar o trabalho a partir dos 14 anos de idade. Hoje a idade mínima é 16 anos. Há outras três PECs — 35/2011, 274/2013 e 77/2015 — apensadas à PEC 18/2011, que também tratam da redução da maioridade laboral. São propostas que ferem a Constituição e representam retrocesso social. Na Câmara e no Senado também há iniciativas que restringem o direito de petição, o ajuizamento de ações trabalhistas.
ConJur – E as questões orçamentárias?
Rodrigo Trindade – Na verdade, trata-se de uma nova “tecnologia de estrangulamento” dos órgãos de jurisdição que vem sendo utilizada nos últimos anos. É um recado do poder econômico para restringir a atuação jurisdicional, justamente porque vem cumprindo bem o seu papel.
ConJur – Essa não é uma questão corporativista dos juízes?
Rodrigo Trindade de Souza – As associações de juízes têm responsabilidades republicanas que exorbitam o mero corporativismo. Claro, temos nossas demandas corporativas e buscamos nosso interesse, como qualquer classe. Somos a única entidade que defende nossos direitos, nossas prerrogativas. Observe que, no macro, não atuamos pensando no próprio interesse. Por exemplo: se vingar a tese da precarização do trabalho, nosso trabalho vai diminuir, pois julgaremos um volume muito menor de reclamatórias. Portanto, estamos atuando para resguardar o estado democrático de direito, para que se cumpram os preceitos constitucionais. E isso não é tarefa só nossa, dos julgadores, mas de todas as organizações que têm esta responsabilidade em seu escopo de atuação.
ConJur – Recentemente, o deputado Nelson Marchezan disse que a melhor decisão, do ponto de vista da gestão, seria acabar com a Justiça do Trabalho. Segundo ele, os trabalhadores conseguiram R$ 8,5 bilhões por meio de decisões judiciais em 2015, mas a Justiça Trabalhista apresentou um orçamento de R$ 17 bilhões.
Rodrigo Trindade – As coisas não são assim tão simples. Resumir jurisdição em termos financeiros é uma tripla incoerência: histórica, política e social. Quem postula a extinção da Justiça Trabalhista raciocina como aquela piada do marido traído que vende o sofá da sala para dar fim à infidelidade da mulher. Antes de embarcar numa cruzada destas, não seria melhor refletir sobre as práticas e condutas empresariais que contribuem para esta enxurrada de reclamatórias? Na verdade, hoje, o Poder Judiciário é o maior, senão o único, abrigo que se interpõe entre o poder do capital ou do Estado e o cidadão, esteja este no papel de trabalhador, de consumidor, de alguém que necessita o acesso a um tratamento médico, entre outras muitas hipóteses.
ConJur – Não é uma conta que deve ser feita, então?
Rodrigo Trindade – A verdade insofismável é que a Justiça trabalhista dá um lucro contábil de mais de R$ 5 bilhões por ano, sem contar com o recolhimento do Imposto de Renda dos funcionários e magistrados. Este superávit, entretanto, jamais deve ser visto como a finalidade da jurisdição. Todo país que se pretende civilizado tem no Poder Judiciário um órgão capaz de dirimir o conflito entre as pessoas. Não se pode colocar na conta matemática o cumprimento de obrigações sociais, principalmente envolvendo direitos fundamentais. Se todas as atividades do Estado só se justificam, de forma contábil, se operarem no azul, não teremos mais ensino público, segurança, serviço diplomático, Justiça, serviço de saúde ou Congresso. Ou seja, não teremos mais serviços públicos nem instituições democráticas. A Justiça não é uma empresa. Não estamos falando de serviços empresariais. Tratamos aqui de pessoas e valores de convivência.
ConJur – Afinal, o que está em jogo?
Rodrigo Trindade – Desde a criação da CLT se ouve falar em “reforma trabalhista”, expressão que remete a uma aparência de neutralidade. O seu único objetivo, na realidade, é a retirada de direitos. Ou seja, promover a precarização de direitos nas relações entre capital e trabalho. Basicamente, significa diminuição de salários, aumento de jornada de trabalho, aumento de terceirização de mão de obra e facilidade de dispensa de trabalhadores. A reforma trabalhista tem de ser vista sob dois grandes aspectos: oportunidade e conveniência. O que se questiona é se este governo tem legitimidade para propor uma reforma trabalhista. No mundo inteiro, qualquer reforma deste tipo só ocorre a partir da formação de consensos. Este governo acena com a reforma agora, mas não foi eleito com esta plataforma. Este projeto de reforma não foi apresentado, discutido nem ratificado pela população brasileira.
(*) Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
(**) Rodrigo Trindade de Souza é Presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da IV Região (Amatra IV).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, por Jomar Martins (*) e Rodrigo Trindade de Souza (**), 04.12.2016
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